terça-feira, 10 de março de 2009
(Beatriz está só. Parece distante. Clarice se aproxima, com delicadeza)
CLARICE – Pensando?
BEATRIZ – Lembrando...
CLARICE – O quê?
BEATRIZ – Tudo que eu vivi, o que aprendi, o que eu perdi...
CLARICE – O seu filho?
BEATRIZ – Também...
CLARICE – Te entristece?
BEATRIZ – Não tinha jeito... Eu não teria como...
CLARICE – (pausa, reticente) Uma coisa me intriga... Eu nunca quis falar, não quero te encher com essas perguntas, nem te magoar, mas... Você tem tanta fé em Deus, acredita em Deus... Não foi muito duro pra você tirar aquele filho?
BEATRIZ – (virando-se para Clarice, carinhosa) Engraçado você falar nisso... Mas vou te dizer, do fundo do coração, que uma coisa não se mistura com a outra... Deus estava comigo, tenho certeza, mesmo que fosse pra me condenar e depois me perdoar, mas estava comigo o tempo todo, desde a decisão de tirar, até diminuir minha tristeza, me fazer esquecer...
CLARICE – (curiosa mas sempre carinhosa) Mas não é um conflito isso? Você acreditar que o mesmo Deus que condena te absolve?
BEATRIZ – (aliviada, como se feliz) Não é Deus que condena! Quem condena são os outros... Os outros sempre nos condenam... Deus perdoa tudo... Até o mais grave dos pecados...
CLARICE – (dirigindo-se à janela) Olhar por essa janela te faz bem?
BEATRIZ - É como encontrar o passado... Uma sensação comum, talvez, mas que faz bem pro corpo...
CLARICE - (olhando pela janela, como se confirmasse) É bom...
BEATRIZ - Me diz que eu estou viva... Que há vida antes e depois de mim...
CLARICE – Não é perigoso lembrar demais?
BEATRIZ - A sensação é boa, o sentimento é bom, desde que refletido numa lembrança boa, como quando a gente sente que alguém ficou feliz em nos rever...
CLARICE – Hoje você ficou horas sozinha, no quarto, pensando também...
BEATRIZ - Hoje eu senti como se ali, do meu lado, o tempo tivesse me dado a estranha possibilidade de sua recriação, como se eu tivesse retomado em minhas mãos, entre o polegar e o indicador, o fio de uma linha que eu havia guardado em algum lugar e que reencontrava ali...
CLARICE – Mas era bom? mesmo aqui dentro? mesmo depois de tudo?
BEATRIZ – É como se a vida estivesse me possibilitando ver dentro dos parênteses que eu abri quando eu renunciei ao mundo lá fora... Estava ali, na minha frente, o tempo recriado numa mulher que era de novo a menina que para mim sempre existiu...
CLARICE – Será que eu sinto isso também?...
BEATRIZ - Você quer saber se foi bom e eu estou tentando recriar o caminho da sensação, o caminho entre a emoção de um encontro, para sempre adiado, e a realização do que para mim parecia um milagre... É algo tão frágil, tão fugaz, mas ao mesmo tempo tão real, porque remontou ali, naquele quarto, uma escada de dias e anos que foi abandonada por mim, por nós, em algum lugar que nós sabemos onde é e que existirá para sempre, mas que também será um lugar que está no passado, numa esquina anterior a tudo que é hoje, a toda realidade que, ainda que distante, se toca...
CLARICE - Então vou mudar a pergunta: você acha que esse delírio foi melhor do que a realidade? Afinal, aqui você sabe que está segura, aqui você tem tudo o que precisa, e o delírio era exatamente aquilo a que você renunciou...
BEATRIZ – Não sei se o delírio é melhor, mas o sonho é sempre mais forte porque é vivido de outra forma, de uma forma estranhamente mais real, mais prática, sem tanta anulação dessas noites que apagam um pedaço da vida da gente... Provavelmente eu esteja redondamente enganada, eu sempre romantizo demais a vida, quando na verdade ela é muito mais prática do que o meu delírio, que é desvairado e pretensioso... Mas ainda acho que senti algo de reminiscência, de alegria sem remorso por aquele instante de reencontro com o que poderia ter sido e não foi, como se tivesse sido só um reencontro com uma fotografia achada ao acaso no fundo de uma gaveta...
CLARICE – E nessa fotografia estava o filho que você não teve...
BEATRIZ – Mas que eu amei em cada segundo daquele sonho impossível enquanto existiu, daquele meu sonho secreto que se criava ali mas não foi possível, e que mesmo como algo de que eu abdiquei, foi felicidade...
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