domingo, 19 de abril de 2009


Há certas coisas que não deveríamos desperdiçar uma vida sem ler, sem ver ou sem ouvir. Por exemplo: um poema de Fernando Pessoa, uma exposição de Picasso, um show de Burt Bacharach...

wbl

sexta-feira, 17 de abril de 2009

CINEMA




Você adorou "Quero ser John Malcovitch"? Se apaixonou por "Brilho eterno de uma mente sem lembrança"? Ficou eternamente intrigado com "Adaptação"? Então prepare-se: Charlie Kaufman - roteirista e autor destes três filmes - está de volta. E com algo muito maior e inesquecível: "Sinédoque Nova York". Eis a prenda: se você chegar até o fim deste filme, terá atravessado o espelho atrás do qual encontrará a si mesmo observando sua vida. Quem sabe você se sinta passivo demais? Afinal, você é um personagem ou o protagonista? Um expectador ou o roteirista? A vida é isto ou isto é um cenário? A vida é sonho ou é real? Se é sonho, quem nos sonha? Se é real, o que são os nossos sonhos? Até quando?... Enquanto você pensa, corra para o cinema!

wbl
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CÂNTICO
Vinícius de Moraes

Não, tu não és um sonho, és a existência
Tens carne, tens fadiga e tens pudor
No calmo peito teu. Tu és a estrela
Sem nome, és a morada, és a cantiga
Do amor, és luz, és lírio, namorada!
Tu és todo o esplendor, o último claustro
Da elegia sem fim, anjo! mendiga
Do triste verso meu. Ah, fosses nunca
Minha, fosses a ideia, o sentimento
Em mim, fosses a aurora, o céu da aurora
Ausente, amiga, eu não te perderia!
Amada! onde te deixas, onde vagas
Entre as vagas flores? e por que dormes
Entre os vagos rumores do mar? Tu
Primeira, última, trágica, esquecida
De mim! És linda, és alta! és sorridente
És como o verde do trigal maduro
Teus olhos têm a cor do firmamento
Céu castanho da tarde – são teus olhos!
Teu passo arrasta a doce poesia
Do amor! prende o poema em forma e cor
No espaço; para o astro do poente
És o levante, és o sol! eu sou o gira
O gira, o girassol. És a soberba
Também, a jovem rosa purpurina
És rápida também, como a andorinha!
Doçura! lisa e murmurante... a água
Que corre no chão morno da montanha
És tu; tens muitas emoções; o pássaro
Do trópico inventou teu meigo nome
Duas vezes, de súbito encantado!
Dona do meu amor! sede constante
Do meu corpo de homem! melodia
Da minha poesia extraordinária!
Por que me arrastas? Por que me fascinas?
Por que me ensinas a morrer? teu sonho
Me leva o verso à sombra e à claridade.
Sou teu irmão, és minha irmã; padeço
De ti, sou teu cantor humilde e terno
Teu silêncio, teu trêmulo sossego
Triste, onde se arrastam nostalgias
Melancólicas, ah, tão melancólicas...
Amiga, entra de súbito, pergunta
Por mim, se eu continuo a amar-te; ri
Esse riso que é tosse de ternura
Carrega-me em teu seio, louca! sinto
A infância em teu amor! cresçamos juntos
Como se fora agora, e sempre. Demos
Nomes graves às coisas impossíveis
Recriemos a mágica do sonho
Lânguida! ah, que o destino nada pode
Contra esse teu langor. És o penúltimo
Lirismo! encosta a tua face fresca
Sobre o meu peito nu, ouves? é cedo
Quanto mais tarde for, mais cedo! a calma
É o último suspiro da poesia
O mar é nosso, a rosa tem seu nome
E recende mais pura ao seu chamado.
Julieta! Carlota! Beatriz!
Oh, deixa-me brincar, que te amo tanto
Que se não brinco, choro, e desse pranto
Desse pranto sem dor, que é o único amigo
Das horas más em que não estás comigo.

in Poemas, Sonetos e Baladas

quinta-feira, 16 de abril de 2009


UM SUPERMERCADO NA CALIFÓRNIA
Allen Ginsberg

Como estive pensando em você esta noite, Walt Whitman, enquanto caminhava pelas ruas sob as árvores, com dor de cabeça, autoconsciente, olhando a lua cheia.
No meu cansaço faminto, fazendo o shopping das imagens, entrei no supermercado das frutas de neon sonhando com tuas enumerações!
Que pêssegos e que penumbras! Famílias inteiras fazendo suas compras à noite! Corredores cheios de maridos! Esposas entre abacates, bebês nos tomates! – e você, Garcia Lorca, o que fazia lá, no meio das melancias?
Eu o vi, Walt Whitman, sem filhos, velho vagabundo solitário, remexendo nas carnes do refrigerador e lançando olhares para os garotos da mercearia.
Ouvi-o fazer perguntas a cada um deles: Quem matou as costeletas de porco? Qual o preço das bananas? Será você meu Anjo?
Caminhei entre as brilhantes pilhas de latarias, seguindo-o e sendo seguido na minha imaginação pelo detetive da loja.
Perambulamos juntos pelos amplos corredores com nosso passo solitário, provando alcachofras, pegando cada um dos petiscos gelados e nunca passando pelo caixa.
Aonde vamos, Walt Whitman? As portas fecharão em uma hora. Para quais caminhos aponta tua barba esta noite?
(Toco em teu livro e sonho com nossa odisséia no supermercado e sinto-me absurdo.)
Caminharemos a noite toda por solitárias ruas? As árvores somam sombras às sombras, luzes apagam-se nas casas, ficaremos ambos sós.
Vaguearemos sonhando com a América perdida do amor, passando pelos automóveis azuis nas vias expressas, voltando para nosso silencioso chalé?
Ah, pai querido, barba grisalha, velho e solitário professor de coragem, qual América era a tua quando Caronte parou de impelir sua balsa e tu desceste na margem nevoenta, olhando a barca desaparecer nas negras águas do Letes?

in UIVO, 1956

quarta-feira, 15 de abril de 2009


"Todas essas montanhas, você já as palmilhou uma por uma, e já é quase outono, tempo de voltar. As montanhas estarão aqui, não a vida."

Amós Oz, in O mesmo mar

terça-feira, 14 de abril de 2009



Alguns homens são reconhecidos pela bondade, outros pelo talento, outros pelo gênio. Mas alguns são dotados de algo tão elevado e tão espetacularmente raro ao gênero comum, que como se ungidos por um bálsamo de bondade, talento e genialidade fazem qualquer outro se sentir especial pela simples semelhança humana. Este foi o caso de Georg Friedrich Händel (1685-1759), cujo aniversário de 250 anos de sua morte se relembra hoje.

WBL
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ALL YOU NEED IS ME
Morrissey

You hiss and groan and you constantly moan
But you don't ever go away
And that's because
All you need is me

You roll your eyes up to the skies
Mock horrified
But you're still here
'Cause all you need is me

There's so much destruction
All over the world
And all you can do is
Complain about me

You bang your head against the wall
And say you're sick of it all
Yet you remain
'Cause all you need is me

And then you offer your one-and-only joke
And you ask me what will I be
When I grow up to be a man:
Me? Nothing!

There's a soft voice singing in your head
Who can this be?
I do believe it's me

There's a naked man standing, laughing in your dreams
You know who it is
But you don't like what it means

There's so much destruction
All over the world
And all you can do is
Complain about me

I was a small, fat child in a welfare house
There was only one thing I ever dreamed about
And Fate has just
Handed it to me - whoopee

You don't like me, but you love me
Either way you're wrong
You're gonna miss me when I'm gone
You're gonna miss me when I'm gone

"Felicidade continuada sempre foi suspeita: mais segura é a entremeada, que tenha algo de agridoce, mesmo para a fruição. Quanto mais se atropelam as venturas, maior é o risco de resvalarem e levarem tudo de roldão. A sorte cansa-se de carregar nas costas o mesmo homem o tempo todo."

A Arte da Prudência, Balthasar Gracián

domingo, 12 de abril de 2009




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RETRATO DE COPACABANA
para Ivan Junqueira

No fim da tarde,
a praia é tomada pelo descanso dos pombos.
A areia acende o espelho
que a luz deposita em cada ave.
Imitam lanternas seus reflexos indefiníveis,
e carregam, na direção que apontam,
o arco da praia,
a máquina crepuscular da antiga hora.

Os pombos na areia
medem o pulso do estômago do escuro.
Vistos de longe,
são a explosão da pupila no movimento do branco.

Na calçada alguns abandonam o bando,
perseguem as fêmeas, fustigam o chão
riscando intenções, e num salto de caça
encontram na cópula o instinto da fuga que subvertem.

À chegada da noite,
os pombos exibem a coreografia do espanto,
e o voo é um leque
sobre o peito pálido do mar.

in OS RITMOS DO FOGO, 1999.

sábado, 11 de abril de 2009


CANTO AOS LIVROS
para Zé Mario e Christine, grandes leitores

Silenciosos livros
que em seus territórios guardam bandeiras, distâncias,
paisagens de números e palavras.
Brancos corredores de paredes inscritas e grades relidas
por seus mantenedores, vozes que nos gritam fórmulas,
títulos, enumerações, lembranças de cidades antigas
como o vinho ou a palavra - que renova o que
pronuncia -, livros que por existir
são sentenças de uma outra sobrevivência.

Símbolos de países e cidades,
armas de um povo guardadas na pedra de algum caminho,
heróis que regressam da batalha da noite,
papéis reencontrados, gaivotas do exílio,
heranças de imagens traduzidas pela matemática das letras.

Livros de quem somos seguidores como dos barcos que se iluminam:
histórias que como crianças são interrogações que se reinventam.
Livros que nos trazem a vida se estamos a perdê-la,
que nos recebem em seus braços
depois dos anos de guerra,
que nos acolhem e nos fazem esquecer
o que o dia relembra
em sua coda.

in OS RITMOS DO FOGO, 1999.

sexta-feira, 10 de abril de 2009


O POETA-OPERÁRIO
Wladimir Maiacovski

Grita-se ao poeta:
“Queria te ver numa fábrica!
O que? Versos? Pura bobagem!
Para trabalhar não tens coragem.”
Talvez
ninguém como nós
ponha tanto coração
no trabalho.
Eu sou uma fábrica.
E se chaminés
me faltam
talvez
sem chaminés
seja preciso
ainda mais coragem.
Sei.
Frases vazias não agradam.
Quando serrais madeira
é para fazer lenha.
E nós que somos
senão entalhadores a esculpir
a tora da cabeça humana?
Certamente que a pesca
é coisa respeitável.
Atira-se a rede e quem sabe?
Pega-se um esturjão!
Mas o trabalho do poeta
é muito mais difícil.
Pescamos gente viva e não peixes.
Penoso é trabalhar nos altos-fornos
onde se tempera o ferro em brasa.
Mas pode alguém
acusar-nos de ociosos?
Nós polimos as almas
com a lixa do verso.
Quem vale mais:
o poeta ou o técnico
que produz comodidades?
Ambos!
Os corações também são motores.
A alma é poderosa força motriz.
Somos iguais.
Camaradas dentro da massa operária.
Proletários do corpo e do espírito.
Somente unidos,
somente juntos remoçaremos o mundo,
fá-lo-emos marchar num ritmo célere.
Diante da vaga de palavras
levantemos um dique!
Mãos à obra!
O trabalho é vivo e novo!
Com os oradores vazios, fora!
Moinho com eles!
Com a água de seus discursos
que façam mover-se a mó!

quinta-feira, 9 de abril de 2009



SONETO XI
Dante Alighieri

Ne li occhi porta la mia donna Amore,
per che si fa gentil ciò ch'ella mira;
ov'ella passa, ogn'om ver lei si gira,
e cui saluta fa tremar lo core,
sè che, bassando il viso, tutto smore,
e d'ogni suo difetto allor sospira:
fugge dinanzi a lei superbia ed ira.
Aiutatemi, donne, farle onore.
Ogne dolcezza, ogne pensero umile
nasce nel core a chi parlar la sente,
ond'è laudato chi prima la vida.
Quel ch'ella par quando un poco sorride,
non si pò dicer né tenere a mente,
sì è novo miracolo e gentile.

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SONETO XI
Dante Alighieri

Tanto amor traz no olhar a minha amada
que quem a vê, de vê-la se enobrece;
todos se voltam quando ela aparece
e àquele a quem saúda ao ser saudada,
treme-lhe o peito, o rosto empalidece,
que sente, suspiroso, a alma culpada
e os ódios e a soberba logo esquece.
Louvai comigo, damas: que a adorada
dama que eu louvo, nossa voz consagre.
Ela traz a doçura que enternece
e louva a quem a viu (que assim se exalta).
Para falar do seu sorriso falta
palavra à idéia, que ela mais parece
milagre novo e bem gentil milagre.

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LIRA

Se contrair a paixão,
há de cortar-se u’a mão,
que alveja o brilho dos olhos
como o fogo os santos óleos.

Amar demais é ser menos
no espelho que nunca vemos.
Quem dera dela fizera
só um meio da quimera!

Doce verso, árduo ingresso,
ao pecado controverso.
Amor, pecado dos mortos,
que vivo é ser como os portos...

Querer ser rei como os astros
que por súditos têm rastros,
velando as cartas de amor
que se esquecem num vapor...

O mal do bem não tem fim,
se o amor é como em mim...

in O AEDO, 1989.


SONETO XVI
Dante Alighieri

Vede perfettamente onne salute
chi la mia donna tra le donne vede;
quelle che vanno con lei son tenute
di bella grazia a Dio render merzede.
E sua bieltate è di tanta vertute,
che nulla invidia a l'altre ne procede,
anzi le face andar seco vestute
di gentilezza, d'amore e di fede.
La vista sua fa onne cosa umile;
e non fa sola sé parer piacente,
ma ciascuna per lei riceve onore.
Ed è ne li atti suoi tanto gentile,
che nessun la si può recare a mente,
che non sospiri in dolcezza d'amore.

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SONETO XVI
Dante Alighieri

Já terá visto a perfeição completa
quem minha dama entre outras damas vê;
as que seguem com ela, por diletas,
agradecem a Deus por tal mercê.
De tal força a beleza tem repleta
que nas outras, inveja não se lê
e ao contrário, com ela mais discretas
guardam modéstia e amor no que se crê.
À sua vista tudo se asserena.
De sua graça não toma exclusiva:
dá que as outras também se tornem belas.
Tanto em seu gesto a cortesia é plena
que não volta à lembrança de quem viva
sem fazer suspirar de amor por ela.

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EVERNESS
Jorge Luis Borges

Sólo una cosa no hay. Es el olvido.
Dios, que salva el metal, salva la escoria
Y cifra en Su profética memoria
Las lunas que serán y las que han sido.
Ya todo está. Los miles de reflejos
Que entre los dos crepúsculos del día
Tu rostro fue dejando en los espejos
Y los que irá dejando todavía.
Y todo es una parte del diverso
Cristal de esa memoria, el universo;
No tienen fin sus arduos corredores
Y las puertas se cierran a tu paso;
Sólo del otro lado del ocaso
Verás los Arquetipos y Esplendores.

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"PARA SEMPRE"
Jorge Luis Borges

Só não há uma coisa. É o esquecer.
Deus, que salva o metal, salva a escória
E cifra em Sua profética memória
As luas que já foram e as que hão de ser.
Tudo está aí: visões multiplicadas
Que entre esses dois crepúsculos do dia
Tua face foi deixando e as refletia
E as que ela irá deixando-as espelhadas.
E tudo é uma parte do diverso
Cristal dessa memória, o universo;
Jamais têm fim seus árduos corredores
E a ti fecham-se as portas com descaso;
Somente do lado oposto do ocaso
Verás os Arquétipos e os Esplendores.

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SONETO NÚMERO 12
Luis de Camões

Se pena por amar-vos se merece,
Quem dela livre está? ou quem isento?
Que alma, que razão, que entendimento
Em ver-vos se não rende e obedece?

Que mor glória na vida se oferece
Que ocupar-se em vós o pensamento?
Toda a pena cruel, todo o tormento
Em ver-vos se não sente, mas esquece.

Mas se merece pena quem amando
Contino vos está, se vos ofende,
O mundo inteiro matareis, que todo é vosso.

Em mim podeis, Senhora, ir começando,
Que claro se conhece e bem se entende
Amar-vos quanto devo e quanto posso.

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quarta-feira, 8 de abril de 2009


SONETO NÚMERO 1
para Fabiana Maranhão, leitora dO AEDO

Qual a lei que liberta o teu amor,
fazendo teu amante seu escravo?
Se soubesses, ao menos, tanta dor,
no mais seria ameno o meu encargo.

Tudo sob os teus olhos perde o lírio
na luz aberta por teu cetro mágico -
és dona, como autora, do delírio
que nutre em mim seu óbolo mais trágico.

Apaga dos meus versos toda luz
vertida pelas horas não vividas.
Se justo é teu caminho nesta lida,

não abandona quem não pode a cruz:
o tempo muitas vezes soma o fogo
da morte cedo se perdido o jogo.

in O AEDO, 1989.

terça-feira, 7 de abril de 2009



SAUDADES
Florbela Espanca

Saudades! Sim... talvez... e por que não?
Se o nosso sonho foi tão alto e forte
Que bem pensara vê-lo até à morte
Deslumbrar-me de luz o coração!

Esquecer! Para quê?... Ah, como é vão!
Que tudo isso, Amor, não nos importe.
Se ele deixou beleza que conforte
Deve-nos ser sagrado como o pão.

Quantas vezes, Amor, já te esqueci,
Para mais doidamente me lembrar
Mais doidamente me lembrar de ti!

E quem dera que fosse sempre assim:
Quanto menos quisesse recordar
Mais a saudade andasse presa a mim!

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MON RÊVE FAMILIER
Paul Verlaine

Je fais souvent ce rêve étrange et pénétrant
D'une femme inconnue, et que j'aime, et qui m'aime,
Et qui n'est, chaque fois, ni tout à fait la même
Ni tout à fait une autre, et m'aime et me comprend.

Car elle me comprend, et mon coeur transparent
Pour elle seule, hélas! cesse d'être un probleme
Pour elle seule, et les moiteurs de mon front blême,
Elle seule les sait rafraîchir, en pleurant.

Est-elle brune, blonde ou rousse? - Je l'ignore,
Son nom? Je me souviens qu'il est doux et sonore
Comme ceux des aimés que la Vie exila.

Son regard est pareil au regard des statues,
Et, pour sa voix, lointaine, et calme, et grave, elle a
L'inflexion des voix chères qui se sont tues.

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MEU SONHO FAMILIAR
Paul Verlaine

Eu tenho sempre um sonho estranho e penetrante
Com uma desconhecida, que amo e que me ama,
E que, de cada vez, nunca é bem a mesma
Nem é bem qualquer outra, e me ama e compreende.

Porque me entende, e o meu coração, transparente
Só pra ela, ah!, deixa de ser um problema
Só pra ela, e os suores de minha testa pálida,
Só ela, quando chora, os sabe acalmar.

Será morena, loira ou ruiva? - Ainda ignoro.
O seu nome? Recordo que é suave e sonoro
Como esses dos amantes que a vida exilou.

O olhar é semelhante ao olhar das estátuas
E quanto à voz, distante e calma e grave, guarda
As inflexões das vozes que o tempo calou.

trad. wbl_______________________________________________________________

THE DAYS AFTER LOVE
for M. E.


I remember those days and even more,
I remember your smile in the Record Store.
I remember no reason, no giving to thank,
I remember the stolen kiss in the Bank.

I remember you calling to say “I remember”,
I remember the falling in me - I surrender…
I remember the dinner at the barbecue restaurant,
I remember that night, those hours, and each instant…

I remember the sweetness of your tender lips,
I remember the tenderness that was never missed.
I remember “hello´s”, “goodbye´s”, and every word,
I remember your name which named my world…

I remember the phonecalls, the trip, the Airport Mall,
I remember exactly what is in the “Metal Ball”…
I remember the cities of Paris and Regensburg –
I remember the destinies wherever I would…

I remember as always, the future, the past,
I remember that time was always so fast.
I remember the “girl”, the “boy”, what could,
I remember me thinking: “What would…”

I remember the biggest love of them all,
I remember the love that was never small.
I remember your hands, your feet, your unforgettable face,
I remember that icebirds are not the same…

I remember myself as happy as you,
I remember me saying: “I love you”.

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PAVILHÃO...
Alberto da Cunha Melo

Hoje, se eu me olhasse de longe
cairia no pranto. Mas,
estou tão dentro de mim mesmo
que meu cadáver me defende.

Por muitas mortes passei
e uma só não me convenceu:
a da espera, a morte sem soma
total, sem deve-haver, sem fim.

Uma coisa particular
é a dor, cercada de cuidados
que humilham (na enfermaria,
uma placa pede silêncio).

Silêncio, Silêncio, Silêncio.
Os avisos nos corredores
não deixam margem para dúvida,
todos querem mesmo silêncio.

Hoje, se eu me olhasse de longe
cairia no pranto. Mas
estou perto demais de mim,
estou dentro da minha lágrima.

para Natascha, que sabe ver o sol através de uma lágrima...

segunda-feira, 6 de abril de 2009


DEFINIÇÃO DA MOÇA
Ferreira Gullar

Como defini-la
quando está vestida
se ela me desbunda
como se despida?

Como defini-la
quando está desnuda
se ela é viagem
como toda nuvem?

Como desnudá-la
quando está vestida
se está mais despida
do que quando nua?

Como possuí-la
quando está desnuda
se ela toda é chuva?
se ela toda é vulva?

in Muitas Vozes, 1999.

sábado, 4 de abril de 2009


STONE MAKING LOVE
Ashok Vejpeyi

It´s stone
kissing stone

stone
taking stone in its arms

stone
filling up
stone

stone
caressing stone

It´s stone being aroused
stone looking on enraptured
stone inviting
stone

It´s stone raising its arms
stone pounding thighs
stone flowering on breasts

It´s stone quivering
stone melting
stone streaming down in currents

stone
consecrating
stone

It´s stone that makes
love to stone.

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IN THE BAR
wbl for the Olive Tree Guitar Ensemble

Moving flowers
like a battle
or a bird
the lady walks
the empty bar

movement
and signs
fill of grace
bottles of time

hours
like ice towers
slowly melt
in broken glasses
and light.

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sexta-feira, 3 de abril de 2009


O REI DO REINO
Canção medieval

Canta o rei em seu cavalo,
Escudeiro do rei, seu vassalo,
Do rei escudeiro, cavalo,
Do reino que canta, vassalo:

"Jurei tornar-me teu rei
E curvar-me aos teus desejos -
De qual dos teus fios de cabelo
Fiel escudeiro serei?

Montado somente em nuvens,
Não tinha animais nem reino,
Mas um sonho, tu primeiro:
No peito é o cavalo que ouves.

Fugiram trezentos do pasto,
Onde o céu é cinza e gasto –
Onde o céu é cinza e gasto,
Não cria a nuvem cavalos,

Só um sonho, o de sonhar-te,
Vivo à morte do que é parte.
(Não soube fazer versos retos,
Contar como os versos não soube.)

No meu reino não há pasto,
Não há pena à morte ou aedo:
Uma montanha é vão no universo,
O amor que perdemos dá medo.

Amo o cristal dos cavalos
No peito de pedra que armei;
Do amor de escudeiro, vassalo;
E querendo ser pedra, sou rei.

Rio a rua a musa a guarda,
Bem tão bela quanto a lua,
Não tão frágil quando a fala,
Sonho a fala e a mente nuas.

Finda o reinado da lua
No dia que dizes: sou tua.
E proclamo este reino reinado,
Do peito aos meus olhos vassalos."

O homem descalço retorna,
Cantando o ofício que herdou:
– Eu vendo escudos do reino!
A guerra que cantas é amor!


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RELÓGIO DE PONTO
Alberto da Cunha Melo

Tudo que levamos a sério
torna-se amargo. Assim os jogos,
a poesia, todos os pássaros,
mais do que tudo: todo o amor.

De quando em quando faltaremos
a algum compromisso na Terra,
e atravessaremos os córregos
cheios de areia, após as chuvas.

Se alguma súbita alegria
retardar o nosso regresso,
um inesperado companheiro
marcará o nosso cartão.

Tudo que levamos a sério
torna-se amargo. Assim as faixas
da vitória, a própria vitória,
mais do que tudo: o próprio Céu.

De quando em quando faltaremos
a algum compromisso na Terra,
e lavaremos as pupilas
cegas, com o verniz das estrelas.

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AUSÊNCIA
wbl

Do que os poemas de amor
que não escrevi,
o teu silêncio foi maior.

Do que as cartas de amor
que não entreguei,
a tua distância foi maior.

Quantas palavras habitaram este silêncio
quando eras só uma hipótese,
quando a distância que te sabia real
foi maior do que todas as cidades?

Outros, melhores do que eu,
terão a sorte de dizer-te o que não pude.

Espero que saibas, no entanto,
que de todas as palavras e todas as distâncias
a tua ausência foi maior.

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quinta-feira, 2 de abril de 2009


GEOGRAFIA DA MEMÓRIA
wbl


Amo o teu cheiro, o teu jeito,
o beijo do oceano
que derramas em mim.
Amo a palavra
distribuída nas sílabas de tua coluna,
e amo a frase inteira
que o meridiano dos teus quadris circunda.
Amo a ciência dos teus joelhos
e o ângulo agudo dos teus cotovelos;
amo a atmosfera do teu pêlo, a lua
no cabelo e a claridade do espelho
em cada uma de tuas unhas.
Amo a estreita circunferência
que a tua cintura enriquece,
e em tuas pernas os caminhos
por onde o teu banho desce.
Amo os teus olhos,
que os meus olhos nunca esquecem,
e os incêndios que a tua língua
ateia em minha pele, despertando cada poro
que se acorda dormente, mas que sente, e sente, e sente...
Amo os teus braços de dulcíssima firmeza
quando os meus braços os cingem,
e eles fingem ser asas
para que me carregues até a mais alta
das encostas, onde outra vez
eu te amo, amando tudo em ti,
o teu gemido,
o teu silêncio,
a tua resposta.

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quarta-feira, 1 de abril de 2009


O QUE TE PRENDE A MIM
wbl

O que te prende a mim
não é o desejo do meu corpo que como um éter
adormece em tua pele.
O que te prende a mim
é a fogueira do primeiro incêndio,
que hoje, no vazio, arde em tua lembrança.

O que te prende a mim
não são os teus prazeres anelados em meus dedos
sob as luzes dos cinemas.
O que te prende a mim
é só a tua fome que tentas esquecer como uma ilha –
corpo que se desprende no gozo que arrepia.

O que te prende a mim
não é a minha poesia estendida aos teus pés
como um tapete de versos.
O que te prende a mim
é o que também ficou comigo e morre um pouco a cada dia,
como o canto das sombras na ilha do sol.

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INFORMAÇÃO PARA TURISTA
Jaci Bezerra

Uma acácia, nos compêndios da poesia,
não será nunca árvore, mas invento:

a invenção de Deus no oitavo dia,
utilizando pássaros, nuvens, ventos.

Milagre que se abre e é concebível
navegando no silêncio das esquinas

ou das praças, e que quanto mais visível
menos aquele que a vê a imagina.

A acácia é leve e ave, sobretudo
à época do verão, quando se inflama

e úmida de luz e sol, aninha tudo,
inclusive o Recife, em suas chamas.

Toda acácia florindo tem o dom
de voar no espaço onde se planta,

e ao florescer, aberta em luz e som,
uma acácia tanto voa como canta.

Qualquer acácia é um excesso de beleza
desconcertando o lógico e o comprovável:

por isso mesmo ao flutuar, acesa,
quem a vê tem vontade de ser árvore.

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TAPEÇARIA
David Mourão-Ferreira

O que em ti há de eterno? O que em ti há de efêmero,
de lira de Camões, de leituras da Elle,
de tão moderno como a própria Nefertite,
de tão antigo como um manequim recente?
O que em ti me recorda um jardim de Munique,
um dia de Setembro, uma praia de sempre?
O que em ti me exaspera? O que em ti me prendeu?
Tudo está afinal na ausência de rima
entre as ancas e o seio, e contudo na linha
em que tudo se une, em que tudo se urdiu.

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PRESÍDIO
David Mourão-Ferreira

Nem todo o corpo é carne... Não, nem todo.
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tato sempre pouco?

E o ventre, inconsistente como o lodo?
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor... Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo...

É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio

vulto da Primavera em pleno Outono...
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!

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