quinta-feira, 24 de setembro de 2009


"Qual seria a razão disso?", ela pergunta. As respostas podem ser muitas. E se multiplicam a cada olhar. Talvez exibam sinais de uma beleza perdida ou de uma liberdade impossível, mas sobre as quais persistirá o diagnóstico de uma convicta solidão. "Será isso uma obsessão?", ela insiste. Não sabemos. Mas aqui respira aquela sensação de quando todos os objetos, lugares e melodias nos remetem, permanentemente, a uma única pessoa.

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quarta-feira, 23 de setembro de 2009


Igitur ou A Loucura de Mallarmé

Weydson Barros Leal


Avignon teria sido feliz se Monsieur Mallarmé riscasse poemas na lousa apagada. Mas a vida precisava dos números - os pratos acesos eram as telas do estômago - e Igitur, poeta, fugira de uma Alemanha cinzenta. Havia trabalhado para um filósofo asmático que morrera de um tipo de solidão generalizada. Igitur poeta escapara da noite por uma ressureição de imagens; resgatara ancestrais nas bengalas dos postes e tornou-se herói de um conto prosopoético. Igitur, disléxico, tinha frase musical e a solidão dos epigramas assonantada e abstrata. Trouxe nos pés uma canção metafísica e no bolso das mãos dados vermelhos pelos quais seria lembrança. Subtraiu de seu livro a sintaxe bem-comportada. Um dia, à porta do poema, disse-lhe sede. O mestre o bebeu como um leite do céu. Engolira a fogueira - não sabia - da poética prática do portão das estrelas. O acaso apaga o dia. O vazio da alma um sapato vazio. Igitur tornou-se hermético como a embalagem do espaço. Inventou Elbehnon - hebraico - filho de Elohim - gangs criadoras de Jeová. Criava tudo. Era poeta. Igitur com Elbehnon foram trama existencial. O vazio era nada - o infinito não se sabe. Ptyx era uma concha grega inventada numa insônia. Igitur insinuou rituais de magia mas não sabia contar. Igitur a loucura do poeta. Elbehnon psicastênico. Igitur o médico e a doidice, o papel e a poesia. Igitur a lógica poética, abstração concreta. O teatro e a peça: Un coupe de dés aboliu as reservas. Em Paris, certa vez, Igitur dava esmolas. O corpo dormia sobre banco de praça. La Bastille, olhos azuis, Rimbaud ainda insone praguejou-lhe a oferta - não compraria o Inferno. Igitur não ouviu. Descia a cavalo o corrimão da noite. O movimento do pêndulo era o soluço dos trens a vapor. Soubera que em Paris ou Avignon o professor conhecia Courbet. “Belicosa, exaltante, preciosa, mundana” sua tinta. Courbet e o professor ouviam miragens. Às nove da manhã, o professor, já poeta, recebeu Paul Valéry para conversa. Era outrubro. Manhã cheia de lua. Valéry conhecia pintura. Sabia Monet, Manet. Escreveu Petit Discours aux Peintres Graveurs. Tomaram chá de ervas até onze e quarenta - o professor tinha cobertos os joelhos. Ouviram falar de Rimbaud. Partiu, parece. Não se sabe muito. Igitur é abstração da Angústia. A Angústia concreta. “Le Rêve a agonisé en cette fiole de verre, pureté, qui renferme la substance du Néant”. A vida de Igitur é um esquema analógico. “Ici: névrose, ennui, (ou Absolu!)”. Igitur não era o relógio - era o pêndulo. Sua raça era a pureza que bebia o absoluto. “O infinito, afinal, está fixo”. Tudo é acaso ou sua reflexão ocasional. O Absoluto. O acaso toca o infinito. O silêncio se olha no espelho. Sombras de seu movimento. Um brinde ao barco bêbado! Os peles-vermelhas e as sereias navegam paralelos. Há semelhanças nas quilhas. As velas são de sonho. Navegam à proa os amigos. Os poetas atrás. Rimbaud baba na popa, seu coração. Monsieur Mallarmé ergue seu brinde de pé. Rimbaud tomou banho no poema. Tingiu de azul o amor fracassado. A aurora explodira como um bando de pombas. Solitude, recife, estrela. Viu Flóridas perdidas com olhos de jaguar. O barco era perdido mas a proa brindava o mar. O charco dessa Europa sabe o branco em sua vela. Monsieur Mallarmé não queria sucesso. Criava cardumes no aquário da noite. A mania dos números ensinou-lhe a operar solidões. Fundou outra literatura. Música e concentração. Gritava numa procissão de cânticos. NADA é palavra de poemas - RIEN. Brincava nos túmulos e conhecia o seu Nada. E era outro o Nada da Morte. Um Nada preenchido de Absoluto. Os dados imitavam as horas. Quatro dados imitam o dia. Um lance do acaso os redime do Nada. Todo poema é um estudo antigo. Fala de ancestrais, de sombras. A criança o homem absoluto. A criança ancestral: Monsieur Mallarmé e Rimbaud eram irmãos, ambos estudaram inglês. O equilíbrio dos nomes era a balança musical que Igitur trazia nos lábios. A música da palavra. O acaso era previsto pelos dedos de Igitur. Monsieur Mallarmé medira o acaso e o infinito. Sua meditação era expressão estética. Não a estética “fora de moda”, que dizia Rimbaud, mas a estética absoluta: “Pintar não a coisa, mas o efeito que produz - todas as palavras devem-se eclipsar ante a sensação”. Queria evadir-se por uma janela do tempo que era o teto em sua alma. Evadiu-se em um mergulho interno e salvou do naufrágio o barco da imaginação. Escreveu Herodiade e L’après-midi d’un faune com pena de asa de anjo. Dramático? - inconcluso. Sua sintaxe tinha o peso do céu. A noite desembocava sua agonia na introdução amarela do dia. Todos, afinal, procuram Baudelaire. Baudelaire é um ancestral que vive. Igitur obra inacabada. Igitur fabrica espelhos sem tempo e bebe a lágrima do Nada. Igitur é um advérbio esquecido. Enfim, Monsieur Mallarmé o deixou numa escada enquanto dormia. Queria conceitos sem trama. O Nada. O Absoluto. O Abstrato entre os dedos do intangível. Para isso encontraria metáforas no cotidiano. A sombra derretera-se em Sonho e Silêncio - Idéia e Azar. Assim nasceu Igitur. A mente rompera a bolsa líquida do Nada. Igitur a bebeu e arrotou o Absoluto.

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sexta-feira, 4 de setembro de 2009


Mesmo que o mundo silencie o motor de todas as certezas,
tu estarás em mim.
Não importa a ausência do corpo,
a mudez dos telefones ou as janelas fechadas,
pois tu estás em tudo o que há de belo e puro.

Nas noites de minhas lembranças
és uma casa iluminada.
Se nela deposito o teu nome,
as coisas se acendem, e por isso
já tudo é como o céu das noites limpas de verão.

wbl

quinta-feira, 3 de setembro de 2009


VOO NOTURNO

No pedaço de lua
que a tua pele ilumina,
é seda e perfume o teu relevo de estrelas.
Em tua geografia todos os pássaros se vestiram de branco
para que em tuas dunas eu erguesse a minha bandeira.

São milhares de luas as curvas que te recriam,
e apenas a tua lembrança
já acende a minha alegria.
(A minha fome velava
enquanto tu dormias,
pois no descanso da festa
o teu silêncio também era poesia.)

No pedaço de lua
que a tua pele acende como uma asa de fogo,
eu guardo a volta e o desejo do meu pouso.

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O VALE

o passado é uma cidade
que não cansa de existir.
é a luz que se equilibra
sobre o tempo do horizonte
que persiste em perseguir.

no presente, o dia, a hora,
é a morte a repetir:
este dia é o mesmo dia
em que em dia de outro ano
haveremos de partir.

nesta lida, o que choramos
é o pão a repartir.
se sonhamos ser felizes
acordados neste sonho
só sonhamos existir.

wbl in Os Círculos Imprecisos

O que nos vem
e o que deixamos.
O que nunca encontra.
O que eternamente
é par.
O lar,
a comunhão...
O que nos é pedido
e o que nos leva.
O que damos, o que
precisamos.
O que é busca, o que somente
nos procura,
o que ninguém concede.
O caminho, o laço, a cama,
o que lutamos pelas mãos,
o que desperdiçamos.
O que nos é dado escrever:
o sonho e o acontecimento.
O homem que ama.
Os danos e o benfazejo.
O lucro, a perda, a falta, o jogo, o amor.
A flecha e o conto.
A ficção, os pés, (a solidão).
O relógio,
a morte.
A música e a vela.
O ventre, o vão, a paixão.
O que queremos.
O que quer.
O que vivemos.
O que vive.
O orgasmo. A espera. A água. A esperança.

wbl in Os Ritmos do Fogo.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009


Deixaste teu brinco
no meu pensamento,
um elo de prata
no espaço e no tempo,

um arco que marca
as voltas do vento,
ou concha que ouve
meu fino lamento.

Deixaste teu brinco
no meu pensamento,
na fome do corpo
da orelha que invento.

wbl, in A Música da Luz

Dentro da noite,
como esta mão
dentro de outra mão,
o tempo canta o seu silêncio.
Não o silêncio da palavra, de garbo
e definição, mas um canto sobre o que, na distância,
se alimenta ao vencê-la,
estro e ruptura de uma multiplicação infinita,
sombra que sustenta o peso da luz.

Nesta mão de abstrato instrumento,
de ritmo claro como o pulso do céu,
ouço o equilíbrio que sobre a vida
constrói o seu impulso - peso e leveza
de todo princípio - barco que conduz
a algum centro
o sentido de tudo.

wbl in Os Ritmos do Fogo