quinta-feira, 23 de julho de 2009


O que fazer, se diante de tudo a certeza tem o mesmo reflexo, o mesmo peso de uma outra possibilidade? O que fazer quando todas as distâncias são endereços perdidos, palácios suntuosos com salas vazias, moças à espera de sonhos falhados? Numa montanha do mundo um homem planeja uma viagem, imagina cidades, países, mas recorda que seu destino também é a sua liberdade, é a possibilidade do desejo que os outros sequer reconhecem... Na montanha, ele é a fome das avenidas, das praças em cuja solidão dorme um cão impressionado com as estrelas... Mas o que fazer diante da estrada, senão percorrê-la até onde a cidade é o seu coração, o seu pulso, o seu novelo povoado? Na praça, o cão é despertado pelas luzes dos carros. A lua é um olho turvo, mas sua luz, por trás deste céu, se derrama sobre estátuas e jardins. Na montanha o homem olha a estrada. A moça adormece em seu sonho iluminado...

wbl

quarta-feira, 22 de julho de 2009


Os dias são fios de uma teia, da costura imprevisível de uma bandeira. Por mais que se planeje o destino, cada ponto é uma janela por onde avistamos caminhos. Por essas janelas passam balões carregando notícias, despejando cartas e fotografias, novas pessoas de ontem e hoje, relembrando vultos inesperados que ressurgem da última sombra de nossa memória. Por essas janelas fiam-se os dias...

wbl

terça-feira, 21 de julho de 2009


O idioma do outro também é nossa tradução, nossa estrada paralela, nossa outra verdade. O espaço entre as palavras e os silêncios do não dito carregam, como uma mulher insone no corredor de casa, os sonhos que na pele são fogueiras do desejo. Todo desejo é uma fome, ela sabe, é o duplo em seu espelho. Como numa sala de espelhos, o idioma do outro é a multiplicação dos seus segredos. No fim do corredor, o dia que nasce também é a sua dúvida, o seu incêndio.

wbl

segunda-feira, 20 de julho de 2009


Otto Maria Carpeaux (1900-1978) e Harold Bloom (foto) (1930-) pretenderam, com ensaios sobre quase tudo e todos na literatura universal, fazer da construção de seus textos a construção de uma Encyclopedia. O primeiro foi mais bem-sucedido que o segundo, embora, em ambos, as paixões e o anseio de totalidade tenham deixado em seus livros as marcas da imprecisão e da superficialidade.

wbl

Um outro diria: - Transformaria isto num diário, não fosse a sua irrefreável vocação para a irregularidade e indisciplina.

wbl

Um descuido seu e escapa um dia. São assim os calendários - como coisas que fogem dos olhos, das mãos... No entanto, como um quebra-cabeça que falta uma peça, sua ausência não significa esquecimento, sendo antes confirmação. Seria isto devido a Chagall? De repente um descuido e lá está você lembrando outra vez, pensando como se tudo fizesse parte do dia, como se fizesse parte da vida, quando, na verdade, o dia que falta não sai mais do coração...

wbl

domingo, 19 de julho de 2009


A poesia está em seu riso e em seu olhar, na diagonal que corta o quadro - é a luz que sua lembrança irradia. Qualquer palavra sua, e ainda a sua presença, é ato ou expressão da poesia. Quem tem de escolher as palavras, dotá-las de luz, pedir a cada uma que se organizem em harmonia poética sou eu, uma vez que entre nós o meu olhar estará apenas buscando o seu duplo, o seu reflexo incomparável. Tantas coisas, ainda, em imagem e tradução, eu poderia associar a este encanto, que preciso interromper o espelho...

wbl

sexta-feira, 17 de julho de 2009

O TEATRO E A VIDA



“O que caracteriza uma peça trágica é, justamente, o poder de criar a vida e não imitá-la. Isso a que se chama 'vida' é o que se representa no palco e não o que vivemos cá fora. Evidentemente, excluo, daqui, as peças digestivas, o teatro para fazer rir, o drama de salão. O personagem do palco é mil vezes mais real, mais denso e, numa palavra, 'mais homem' que cada um dos espectadores. Querem um exemplo? Vejam d. Moema ou d. Eduarda ( na peça Senhora dos Afogados) e ponham-na ao lado de certas senhoras da plateia. Percebemos, então, que a espectadora de carne e osso não vive realmente, imita apenas a vida. Finge que é mulher, finge que é criatura humana e continua fingindo até no leito conjugal. Nada conhece, nada sabe dos desesperos, das paixões, das agonias que a poderiam alçar à plenitude de sua condição humana. Já d. Moema ou d. Eduarda, não. Está no palco, com as olheiras de carvão, mas 'vive'. Tem a autenticidade, a gana, a garra, o delírio que nos faltam. E, súbito, sentimos na plateia o dilaceramento da nossa frustração total. O personagem vive a vida, que devia ser a nossa, a vida que recusamos. Outra verdade, que julgo definitiva, é a seguinte: a alegria não pertence ao teatro. Pode-se medir a força de uma peça e a sua pureza teatral pela capacidade de criar desesperos. O teatro ou é desesperado ou não é teatro. Certos beneméritos colocam o problema teatral em termos de 'Reconstituinte Silva Araújo'. Segundo esses, as peças tristes - as peças que libertam os anjos das nossas agonias - não são válidas. E, no entanto, o que acontece é precisamente o contrário. Alegria não dá nada, ou quase nada, seja na vida mesma, seja no teatro. Ela empobrece, amesquinha e aniquila o nosso horizonte interior. Ao passo que o desespero confere ao homem uma dimensão nova e decisiva. O verdadeiro dramaturgo, o que não falsifica, não trapaceia, limita-se a cavar na carne e na alma, a trabalhar nas paixões sem esperanças, que arrancam de nós o gemido mais fundo e irredutível. Isso faz sofrer, dirão. De acordo. Mas o teatro não é um lugar de recreio irresponsável. Não. É, antes, um pátio de expiação. Talvez fosse mais lógico que víssemos as peças, não sentados, mas atônitos e de joelhos. Pois o que ocorre no palco é o julgamento do nosso mundo, o nosso próprio julgamento, o julgamento do que pecamos e poderíamos ter pecado. Diante da verdadeira tragédia, o espectador crispa-se na cadeira, como um pobre, um miserando condenado.Esta peça (Senhora dos Afogados) está varrida de suicidas, incestuosos, adúlteras e insanos. Mas vamos e venhamos: o homem normal, com a sua amena transparência, não oferece nenhuma teatralidade. É o antiteatral por excelência. Falta-lhe o ranger dos dentes, o ríctus, o esgar de ódio, de medo. Num mundo como o nosso, definitivamente infeliz e doente, é quase uma obrigação ser também infeliz, também doente. Permito-me uma comparação: rir neste mundo é o mesmo que, num velório, acender o cigarro na chama de um círio.” (Nelson Rodrigues)

quinta-feira, 16 de julho de 2009


ELE - Há algo estranho nisso...
O ESPELHO - Não há nada estranho, ele só está girando...
O RELÓGIO - Eu não faço nada diferente do que vinha fazendo há anos...
ELE - Mas tudo continua aqui, colado na minha retina, ecoando nos meus ouvidos...
O ESPELHO - Humm...
O RELÓGIO - Pode ser o meu movimento...
ELE - Não, não... é uma voz, uma imagem... não consigo esquecer...
O RELÓGIO - Por que você não apaga a luz? Pode ajudar...
O ESPELHO - Melhor desligar o relógio...
ELE - Já se passaram seis noites e tudo continua lá. Não sai da minha cabeça...
O ESPELHO - Melhor se aproximar...
O RELÓGIO - Seria bom escutar outra vez... talvez a voz falando diretamente com você... pode ajudar... principalmente se não for nada disso... pode ter sido uma impressão errada...
ELE - E se eu disser que vi e ouvi outra vez? Que falei e escutei?
O RELÓGIO - E então?...
ELE - Tudo ficou maior...
(wbl)

quarta-feira, 15 de julho de 2009



VLADIMIR
A árvore, preste atenção na árvore.

ESTRAGON
Não estava aí ontem?

VLADIMIR
Claro que estava. Esqueceu? Estivemos a ponto de nos enforcar-mos nela. (...) Mas você não quis. Não está lembrado?

ESTRAGON
Você sonhou.

VLADIMIR
Será possível que já tenha esquecido?

ESTRAGON
Comigo é assim mesmo. Ou esqueço na hora ou nunca mais.

...

terça-feira, 14 de julho de 2009


CIDADES

Weydson B. Leal

A vida é isto:
o mundo é outro e longo é o caminho...
Todos os dias os jornais são retratos falhados
de nossa antiga humanidade. Seremos bárbaros, ainda?
E, entanto, o que fizemos? O que faremos?
A paisagem, agora, é o medo que sangra em nossas retinas.
Os pássaros resistem – escuto-os – mas a cidade está fechada,
e nas calçadas, nas praças, nas varandas, não há lugar seguro...
Numa ilha do mundo um homem tem nas mãos
um livro de versos: a poesia é sua ponte, o seu escudo,
a janela por onde procura a humanidade.
No espaço da cidade este poema não é nada,
mas quem o lê reinventa-o a cada palavra, em cada linha
que sua distância resume para que o dia resista,
para que a cidade amanheça em cada pássaro,
e a vida seja mais do que pensamos.

segunda-feira, 13 de julho de 2009


Numa fresta de julho uma luz desce. O tempo tem estranhezas de mar, sensações de navegação. Vejo "There's only one sun", de Wong Kar Wai, e a estranheza doce da sensação permanece. Alguém que está lá e não vejo, que vejo e não sei... "There's only one sun, but it travels the world every day..." Devo ser um só, mas as sensações são de dois milhões de sóis...

sábado, 11 de julho de 2009


Sempre desconfiei que dois raios poderiam, sim, cair seguidamente num mesmo lugar. Custava a acreditar, mas acreditava. Há alguns dias tenho recebido sinais de que isto realmente é possível. O raio, claro, pode ser um monte de coisa. Quanto ao lugar, bem, este pode ser uma árvore, uma casa, uma moeda no meio de um parque, ou, na melhor das hipóteses, a minha cabeça.