terça-feira, 31 de março de 2009


ILHA
David Mourão-Ferreira

Deitada és uma ilha. E raramente
surgem ilhas no mar tão alongadas,
com tão prometedoras enseadas,
um só bosque no meio florescente,

promontórios a pique, e de repente,
na luz de duas gêmeas madrugadas,
o fulgor das colinas acordadas,
o pasmo da planície adolescente.

Deitada és uma ilha. Que percorro
descobrindo-lhe as zonas mais sombrias.
Mas nem sabes se grito por socorro

ou se te mostro só que me inebrias.
Amiga, amor, amante, amada, eu morro
da vida que me dás todos os dias.

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SONETO NÚMERO 5

Queria te escrever profundamente oblíquo,
de um jeito sem esquadro que os quadrados fazem -
os ângulos, se importa, é porque são ambíguos,
e assim a vida toda e a vida que eles trazem.

Não gosto da matéria matematicável,
das curvas sempre retas que essas retas fazem -
os números são sós porque não são amáveis,
e primos não se amam como os mortos jazem.

Um dia eu deixarei de fazer versos tolos,
por mim e porque sei do circuncentro a morte -
não deixes dividendos sem compasso à sorte -

amar é bem pior do que meus versos tolos -
um incerto sentimento, do menino o medo -
e o resto, como um número, é guardar segredo.

wbl in O AEDO, 1988

CUCA DE MAÇÃ

Ingredientes

1 xícara (chá) de açúcar
3 gemas
3 colheres (sopa) de margarina
1 e 1/4 xícara (chá) de farinha de trigo
1/2 xícara (chá) de amido de milho
1 colher (sopa) de fermento em pó
3/4 xícara (chá) de leite
3 claras
2 maçãs (cortadas em fatias finas)

Farofa

3 colheres (sopa) de açúcar
4 colheres (sopa) de farinha de trigo
2 colheres (sopa) de margarina (derretida)
1 colher (sopa) de canela em pó


Modo de Fazer

Bata o açúcar com as gemas até obter um creme. Acrescente a manteiga e a mistura de farinha, amido de milho e fermento, peneirados juntos. Alterne com o leite. Por último, acrescente as claras batidas em ponto de neve. Mexa delicadamente. Unte uma fôrma e coloque metade da massa. Sobre a massa, espalhe metade das maçãs. Coloque a massa restante, cubra com a outra metade das maçãs. Misture todos os ingredientes da farofa em uma tigela e espalhe sobre as maçãs. Leve ao forno pré-aquecido por 20 minutos.

Modo de Fazer no Microondas

Bata o açúcar com as gemas até obter um creme. Acrescente a manteiga e a mistura de farinha, amido de milho e fermento, peneirados juntos. Alterne com o leite. Por último, acrescente as claras batidas em ponto de neve. Mexa delicadamente. Unte uma fôrma refratária e coloque metade da massa. Sobre a massa, espalhe metade das maçãs. Coloque a massa restante, cubra com a outra metade das maçãs. Misture todos os ingredientes da farofa em uma tigela e espalhe sobre as maçãs. Leve ao microondas por 8 a 9 minutos na potência alta.

segunda-feira, 30 de março de 2009


SONETO NÚMERO 6

O meu amor é burro como dois escravos,
a quem a liberdade, a sós, escravizou.
Seria no silêncio um gato preto ao cravo,
andando sem compasso, dedilhando a dor.

O meu amor é duro e em nada sabe o passo
à dúbia inteligência que abortou sem cor.
Seria na bonança um raio errando o espaço,
riscando como um cão as fezes do pavor.

O meu amor é pardo como o dia à noite;
um rei sem seu reinado, sem as calças, nu,
co'o cheiro da tristeza como um peixe cru.

Navega a longitude desse amor pagão,
rezando pr'uma virgem de um doente são:
o meu amor bizarro, burro dia e noite.

wbl in O AEDO, 1988.


Morreria em batalhas pelo prêmio desta noite...
Loucos Lorcas, poetas do milênio,
tantas paixões por tantas bandeiras -
e eu permaneço perplexo em tua aurora...
Amo e o meu amor é todo um só ramo
de luzes que cultivo para ti:
da rima das estrelas, és senhora.

wbl, Serenata in O AEDO, 1988.
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Nelson Rodrigues disse uma vez que ele mesmo era a soma de suas contradições. Quanto a mim, sou a soma de minhas perdas, do que me falta. Eu também sou as minhas subtrações...
wbl

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"Aos olhos dos outros, apresento-me como um diletante e dândi; afinal, não é recomendável mostrar o próprio coração ao mundo."

Oscar Wilde

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domingo, 29 de março de 2009


Tu me inventaste. Não há um ser assim,
e nem poderia um ser assim haver.
O médico não cura, o poeta não consola -
uma aparição te assombra dia e noite...

Anna Akhmátova


Algo de miraculoso arde nela,
fronteiras ela molda aos nossos olhos.
É a única que continua a me falar
depois que todo o resto tem medo de estar perto.
Depois que o último amigo tiver desviado o seu olhar
ela ainda estará comigo no meu túmulo,
como se fosse o canto do primeiro trovão,
ou como se todas as flores explodissem em versos.

Música, Anna Akhmátova

"Este encontro é mais cruel que separar-se!..."

Anna Akhmátova

sábado, 28 de março de 2009


J'ai tendu des cordes de clocher a clocher; des guirlandes de fenêtre à fenêtre; des chaînes d'or d'étoile à étoile, et je danse.
Arthur Rimbaud

(Estendi cordas de campanário a campanário; guirlandas de janela a janela; correntes de ouro de estrela a estrela, e danço.)

A.R.

sexta-feira, 27 de março de 2009


"A música, os estados de felicidade, a mitologia, os rostos trabalhados pelo tempo, certos crepúsculos e certos lugares querem dizer algo, ou algo disseram que não deveríamos ter perdido..."

Jorge Luis Borges
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"O melhor texto de teatro apresentado no Brasil nos últimos dois anos. O melhor espetáculo de teatro em cartaz, hoje, no Brasil."

Weydson Leal, membro da ABCA (Associação Brasileira de Críticos de Arte).

quinta-feira, 26 de março de 2009


"O inconveniente do pudor é que ele leva continuamente à mentira."

Stendhal, in Do Amor.

“Caminhando para o estúdio, sentia-me subitamente insubstancial, como se fosse uma figura pintada numa tela. A respiração tornava-se difícil e dolorosa. Passado um momento, invadia-me uma sensação de felicidade e bem-estar tão intensa que me parecia ter perdido todo o peso. Parecia que só aderia à terra pelo peso dos sapatos. De um momento para o outro eu poderia voar para fora da membrana da gravidade, incapaz de parar. O sentimento era tão agudo que tinha de apoiar-me à parede mais próxima e continuar a caminhar curvada como um passageiro que passeia no convés de um transatlântico durante um furacão. Depois vinham outras sensações menos agradáveis, um círculo escaldante em redor da cabeça, ruflar de asas nos ouvidos. Semi-sonhando na cama, vinham trombetas estourar-me o cérebro, encher-me o espírito; ou via as pupilas injetadas de sangue de um animal venenoso lançar-me um olhar escaldante. Era uma noite fresca, com as suas bolsas de luz química na cidade árabe. Os faunos tinham partido para as outras paragens de além-mar com as suas longas tranças oleadas e a túnica ornada de lantejoulas; as faces dos anjos negros; os homens fêmeas dos bairros ribeirinhos...” (Copiei estas linhas do diário de uma doente mental que tinha vindo tratar-se à clínica de Baltasar de uma depressão nervosa, consequência de um “amor”).

Baltasar, in O Quarteto de Alexandria, de Lawrence Durrell

quarta-feira, 25 de março de 2009


THE ANCIENT CHILD

A ferrugem do outono
habita a velha máquina
que desliga o verão.
Uma árvore nos ensina
a impermanência das cores.
Naquele país elas mudam
as sombras a cada dia.

Ruiva como um pêssego,
a cidade transporta o perfume
de uma outra alegria.
O silêncio ferve nas casas
ecoando em seus copos vazios.

Do menino,
lembro seus gestos
que a manhã musicava: a vida
era guardada nos olhos
onde se escutava nascer a luz.

O verão acabou
na cidade onde aprendi
que as cores esfriam.
Hoje lembro o cordão
que era o grito do sol
no pescoço do dia.

wbl, in O AEDO

BEIJO

Noite de espera e esmorecimento. Anjos com tochas e crianças dormentes. Seus olhos revelam os jogos da extirpação.
A febre e os dedos crispados. A pele desenhada por inchações. Sexo e unhas mutilados.
Início de putrefação em algumas extremidades provocada pelos membros enforcados. Pequenos cortes à altura das costelas por onde se observa uma membrana ressequida. Por uma abertura maior vasa ainda a respiração.
Os olhos perfurados giram em movimentos desconexos sob os coágulos. Os lábios foram decepados – lentamente – criando quase um sorrido pela exposição dos dentes.
Rápidos suspiros e convulsões. O corpo se curva, atirando a cabeça para trás.
Convulsões – agora nervosas e ininterruptas.
Urina e fezes misturam-se ao sangue quando a cabeça, em histeria, sufoca a si mesma.
Silêncio e reflexão.
Doce de amêndoas, chá e torradas.

wbl, in O silêncio e o labirinto

terça-feira, 24 de março de 2009


"Vivemos juntos, influímos nos outros e reagimos uns aos outros, mas sempre e em todas as circunstâncias estamos sozinhos. Os mártires entram de mãos dadas na arena, mas são crucificados sozinhos. Abraçados, os amantes tentam desesperadamente fundir seus êxtases insulados numa única autotranscendência; em vão. Por sua própria natureza, cada espírito encarnado está condenado a sofrer e a gozar em solidão."

Adous Houxley, in As portas da percepção

I I

Até quando seremos felizes?
Até quando seremos a mira
que o espelho espera? O duplo
multiplicado?

Lembra quando rasgamos o peito e o tempo escoou?
Eram poemas e flores
e um hálito de pedras...

Hoje a flauta doce foi buscada,
o amargo do vinho, a noite,
e uma barca de espelhos
que navega cegamente para a guerra...

wbl, in O Ópio e o Sal

I I I

Haverá de nos suportar o tempo da lida,
e tudo quanto de tristeza e alegria não cabe no poema.
O verso deve ser comedido
para não comprometer a irmandade
dos solitários poetas.

Haverá a força para não amar e
a tarde paras recriar os sapatos – os pés
representam asseados a alma do poeta,
quando sujos, sua coragem e abnegação.

Haverá todo tempo para construir o verso,
limpar a casa e escrever
literatura –
haverá música e pêssegos
quando o espaço entre o chão e a alma
for um preenchimento apenas de coisas velhas,
e como nós,
for surdamente esquecido
entre as estações.

wbl, in O Ópio e o Sal

segunda-feira, 23 de março de 2009


AS DOBRAS DO DIA


Há um poeta rindo no portal da tua casa
que não sou eu mas o eu que te acompanha,
e eu estar em ti é lembrar de mim
quando penso que és minha casa.

Permaneço em sonho
enquanto tu me navegas,
e existir em ti é realizar os planos
de quando existires
saberes como sofrem os sonhos –
amor é mar
que sempre subsiste,
e quando queremos navegar
a vela nos devora
e o vento é sempre triste.

wbl in O Ópio e o Sal

domingo, 22 de março de 2009


NATALIE

O teu sorriso é uma dança.
Tua boca nasce a cada dia
como a faca e a fruta.
Há nos teus dentes uma cor
que não há noutra forma de tempo –
a brancura dos teus olhos é irmã e cai
em teu brilho de ursa
e em cada anel.

O teu sorriso é uma forma de vencer as guerras,
e as tuas mãos sobre os joelhos
uma arquitetura de gregos.

Penso que caiu alguma lua no jardim que andaste aqui,
e a própria queda dos impérios
é uma predição de ti.

O teu passado é uma praia
onde nasceram as conchas,
e o teu presente uma eternidade de luz e de ondas
onde as conchas cantam
teu dom e tua luz.

wbl, in O Ópio e o Sal

sábado, 21 de março de 2009


A GRUTA

Buscarei noutras mortes a minha última clepsidra. Falta-me o álcool na carne dos dias; pregar de miragens; papéis marcados com versos...
Ao sol toda obediência dos crentes! Também descarnarei da aurora a minha ignorância de esteta! Ausência de filhos e um universo de cemitérios para o descanso.
Eu e tu, amor impossível, de mãos à distância do fogo que escorre pelo teu nome – mirto sobre tua existência –, seremos serenos como os ferros de uma longa catedral – nave das perdas de todas as identidades, estábulo de inocentes, taça de pedras movidas...
Trago a visão do meu tempo; arte de rebelados; mitigantes – perdão... Nas fileiras noturnas a casa do Nada é uma imensa moenda – parte de uma morte mais funda que se chama ausência de luz.
No último subúrbio do meu coração revi a gruta do teu esquecimento e os líquidos navios de tuas mãos. Criaste a água e o fogo – lúdicas fontes desfeitas com o dia, que a alegria da festa não sabia, matando-as com a luz que o olho engolia.
Pele do trânsito das aves, lente de infinita claridade! Não sabe a estrada em que cabe esta gruta,
A gruta esquecida,
A gruta,
A gruta.

wbl, in O Ópio e o Sal

sexta-feira, 20 de março de 2009


ENDEREÇO
para Priscila

A cidade que perdemos,
não será outra,
dorme em nossa infância.

Do outro lado da rua, como do outro lado
do mundo, fala-se um nome que ouvimos há muito.
Ali,
jarros com o perfil do silêncio
quebram-se em luzes, alimentam o tempo,
recompõem o destino de alguma existência.
A rua, como uma olaria,
transporta o passado à sua eterna
submissão – o tempo presente –
e tudo respira o seu éter, reconstrói o seu sonho,
habita o mistério que ferve em cada olho.

Nas calçadas, a miséria ainda sangra
o seu bálsamo escuro. Alguns desconfiam
que não poderão esperar – o presente lhes pesa,
e pesa a ausência
que se acostumou a não ter.

Em nossa memória serão construídas
novas cidades, mas tudo, no fim,
será um único retrato.
Alguma paisagem será vista. O que perder-se
habitará a resignação de nossas acomodações,
o solo de nossos mais profundos medos,
o comprometimento com o que, para nós,
não foi permitido.

A rua permanece com sua coreografia de caminhos
a ouvir daquela senhora uma nova pergunta.
Em seu corpo há uma dúvida que a rua
não pode apagar. O seu destino é outro,
como outra é a multiplicação de janelas
que não se abrirão para o seu espetáculo.

A rua e o tempo são esta senhora que procura.
Na olaria,
sua resposta é a pedra em que respira a luz.

wbl, in Os Ritmos do Fogo

quinta-feira, 19 de março de 2009


POEMA BUFO-CAVALHEIRESCO EM MEMÓRIA DE UM POETA QUASE MORTO POR SUA MUSA QUE NINGUÉM CONHECIA...

Saber o dia dos festejos desta morte,
e vivê-lo docemente, e como um corte
doar ao tempo o desejo de curá-lo...
Mas, sejamos fortes,
como agulhas que procuram
a sorte das veias, busquemos a cor
da paixão que imanta o norte: acima das horas,
trato como minhas todas as senhoras,
e de prostitutas faço as angústias
que nos trazem as andorinhas...

Neste dia, o mesmo em que soubeste
como ria a menina louca que sonhava ser rainha -
mesmo sendo como acima lias, mesmo vendo
que ressurgiremos das asas de um acorde como um grito
de fome e disforme, perdida a memória na história
de um país sem saudade de nada,
a não ser da glória que nunca acontecia -
foi então, que um soldado civil – um paquistão –
em passagem no Brasil, encomendou a alma à sorte
de um pagão, como quem soubesse (e ainda sorria)
do oposto da palma da mão que dizia, com dentes de búzios,
que fazendeiro é quem cria vaca pra colher
bosta no interior da Bahia...

Uma data e só a hora faz do medo um calendário,
onde arrasta a asa preta o ossuário, e se faz de cabra-cega
e noutra casa faz a entrega, onde poste a sua cor, e neste número
chamem de calvário este novo aniversário, que faz reunir a família,
o cachorro, o florista, registrando memorável o fotogênico memorial,
estrelando o seu artista – qual de nós o próximo, o ideal? –
quando no dia do aniversário da morte fosse noite,
e dentro da noite a própria morte viesse contar pros vivos
que o seu mármore é pesado, frio, duro como um gelo ou
um continente, um menino descontente ou um coiote.

Hoje há uma estrela no céu de quem mente mas seduz,
e assim se come a hora e comemora e vai-se embora,
sem saber se a vida vale mais que o seu dilema, dois beijos
quase doces ou um telefonema, e que o hiato seja breve
entre a porta e o que não abre,
a rosa que fecha,
um cordão
ou um poema.

wbl

quarta-feira, 18 de março de 2009


POÉTICA

Sobre a cama, só, ela escreve na parede do quarto:

Paredes que sabem meus sonhos profundos,
Eu quero beber o sêmen do mundo,
Enquanto o dia for apenas provisório...
Sinto-me eterna como um morto que sonha –
Ele está nu, e dança sobre a sala,
O seu segredo é somente o que se fala,
O púbis me pulsa a úmida fome.


E com o travesseiro entre as pernas, dorme.

wbl

terça-feira, 17 de março de 2009


A ESTRADA

A partir de certo ponto da estrada havia um antes e depois dali. Não adiantava retornar, voltar ao caminho percorrido, rever todos os começos, inventar outros. Porque para sempre tudo seria antes e depois daquela experiência. Nem sua permanente recordação substituía o que fora vivido. Era preciso seguir em frente, a cada dia.

wbl

segunda-feira, 16 de março de 2009


METEORO

No fim seremos dois.
Hoje há o espaço dos outros
na janela atormentada.
No fim seremos um mapa
e o desenho de um rio.
No fim veremos o palco
deste dia que passa.
No fim será o silêncio
ante o fogo que não cala.

wbl

O PÓDIO

O meu coração é um pódio
Onde, depois de toda vida,
O amor, a indiferença, o ódio,

Ou qualquer acontecimento
Que não seja só a lembrança,
Torna-se puro esquecimento –

Música depois de uma dança,
Passado depois da partida –
E o tempo repõe a gastança.


wbl

domingo, 15 de março de 2009


Quadrinha amorosa

E nesse presídio de pedra
aonde vive o coração,
ainda resiste a certeza
que amor é seu único pão.

wbl

sábado, 14 de março de 2009



REINO


Os meus distantes mundos, todos inconfessos,
são só porque te guardo, é nada não mostrar.
O pouco que proponho, quase o que te peço,
é simplesmente amar, e em mim é mais que amar.

E todos os instantes que desnudo em cura
do fogo que os acende para o amor mostrar,
são horas traduzidas duma língua escura,
são frágeis como os gritos de um incêndio ao mar.

Mas sabem refletir, além meus pobres mundos,
a luz vitrificada do teu negro olhar,
e a mesma paz que é tua, paz que em mim eu busco,

agora é aquele incêndio sobre a paz do mar.
E todos inconfessos, meus distantes mundos,
são ilhas em que danço enquanto queima o ar.

wbl

sexta-feira, 13 de março de 2009



CIDADES II
para P.V.


Os teus segredos eu sei,
posto que em mim se inventou o teu mistério.

A tua voz, estranha invenção que faz cantar o silêncio,
é a partitura que justifica o poema.

Sob o tecido de tua intimidade
és o dia e a noite de uma cidade em festa.

Hoje é a paz que o teu corpo nomeia,
pois nua és o sol de um tempo melhor.

wbl

quarta-feira, 11 de março de 2009



CIDADES
para C.D.


A vida é isto:
o mundo é outro e longo é o caminho.
Todos os dias os jornais são retratos falhados
de nossa antiga humanidade. Seremos bárbaros, ainda?
E, entanto, o que fizemos? O que faremos?
A paisagem, agora, é o medo que sangra em nossas retinas.
Os pássaros resistem – escuto-os – mas a cidade está fechada,
e nas calçadas, nas praças, nas varandas, não há lugar seguro...
Numa ilha do mundo um homem tem nas mãos
um livro de versos: a poesia é sua ponte, o seu escudo,
a janela por onde procura a humanidade.
No espaço da cidade este poema não é nada,
mas quem o lê reinventa-o a cada palavra, em cada linha
que sua distância resume para que o dia resista,
para que a cidade amanheça em cada pássaro,
e a vida seja mais do que pensamos.

wbl

Um rio nunca é o mesmo, assim como a mulher que o rio banha ou o homem que a observa, ainda na margem. A cada segundo o rio é outro, e assim o homem e a mulher que fazem de suas experiências algo sempre novo como a luz, as sombras e a noite que segue como o rio. A minha água é a alegria que me justifica acompanhá-la, é a clareza do rio que me pede para bebê-la, tocá-la, até nos confundirmos com o próprio rio e sua alegria for um gemido da carne, um susurro da alma, a fogueira que na margem é como um corpo em outro corpo, rio dentro do rio, água na terra, sêmen ou sangue que como a vida são todas as cores. E no rio nos encontramos, enlaçados, onde os corpos não mais se percebem como individualidades, mas como comunhão.

wbl

terça-feira, 10 de março de 2009


(Beatriz está só. Parece distante. Clarice se aproxima, com delicadeza)

CLARICE – Pensando?
BEATRIZ – Lembrando...
CLARICE – O quê?
BEATRIZ – Tudo que eu vivi, o que aprendi, o que eu perdi...
CLARICE – O seu filho?
BEATRIZ – Também...
CLARICE – Te entristece?
BEATRIZ – Não tinha jeito... Eu não teria como...
CLARICE – (pausa, reticente) Uma coisa me intriga... Eu nunca quis falar, não quero te encher com essas perguntas, nem te magoar, mas... Você tem tanta fé em Deus, acredita em Deus... Não foi muito duro pra você tirar aquele filho?
BEATRIZ – (virando-se para Clarice, carinhosa) Engraçado você falar nisso... Mas vou te dizer, do fundo do coração, que uma coisa não se mistura com a outra... Deus estava comigo, tenho certeza, mesmo que fosse pra me condenar e depois me perdoar, mas estava comigo o tempo todo, desde a decisão de tirar, até diminuir minha tristeza, me fazer esquecer...
CLARICE – (curiosa mas sempre carinhosa) Mas não é um conflito isso? Você acreditar que o mesmo Deus que condena te absolve?
BEATRIZ – (aliviada, como se feliz) Não é Deus que condena! Quem condena são os outros... Os outros sempre nos condenam... Deus perdoa tudo... Até o mais grave dos pecados...
CLARICE – (dirigindo-se à janela) Olhar por essa janela te faz bem?
BEATRIZ - É como encontrar o passado... Uma sensação comum, talvez, mas que faz bem pro corpo...
CLARICE - (olhando pela janela, como se confirmasse) É bom...
BEATRIZ - Me diz que eu estou viva... Que há vida antes e depois de mim...
CLARICE – Não é perigoso lembrar demais?
BEATRIZ - A sensação é boa, o sentimento é bom, desde que refletido numa lembrança boa, como quando a gente sente que alguém ficou feliz em nos rever...
CLARICE – Hoje você ficou horas sozinha, no quarto, pensando também...
BEATRIZ - Hoje eu senti como se ali, do meu lado, o tempo tivesse me dado a estranha possibilidade de sua recriação, como se eu tivesse retomado em minhas mãos, entre o polegar e o indicador, o fio de uma linha que eu havia guardado em algum lugar e que reencontrava ali...
CLARICE – Mas era bom? mesmo aqui dentro? mesmo depois de tudo?
BEATRIZ – É como se a vida estivesse me possibilitando ver dentro dos parênteses que eu abri quando eu renunciei ao mundo lá fora... Estava ali, na minha frente, o tempo recriado numa mulher que era de novo a menina que para mim sempre existiu...
CLARICE – Será que eu sinto isso também?...
BEATRIZ - Você quer saber se foi bom e eu estou tentando recriar o caminho da sensação, o caminho entre a emoção de um encontro, para sempre adiado, e a realização do que para mim parecia um milagre... É algo tão frágil, tão fugaz, mas ao mesmo tempo tão real, porque remontou ali, naquele quarto, uma escada de dias e anos que foi abandonada por mim, por nós, em algum lugar que nós sabemos onde é e que existirá para sempre, mas que também será um lugar que está no passado, numa esquina anterior a tudo que é hoje, a toda realidade que, ainda que distante, se toca...
CLARICE - Então vou mudar a pergunta: você acha que esse delírio foi melhor do que a realidade? Afinal, aqui você sabe que está segura, aqui você tem tudo o que precisa, e o delírio era exatamente aquilo a que você renunciou...
BEATRIZ – Não sei se o delírio é melhor, mas o sonho é sempre mais forte porque é vivido de outra forma, de uma forma estranhamente mais real, mais prática, sem tanta anulação dessas noites que apagam um pedaço da vida da gente... Provavelmente eu esteja redondamente enganada, eu sempre romantizo demais a vida, quando na verdade ela é muito mais prática do que o meu delírio, que é desvairado e pretensioso... Mas ainda acho que senti algo de reminiscência, de alegria sem remorso por aquele instante de reencontro com o que poderia ter sido e não foi, como se tivesse sido só um reencontro com uma fotografia achada ao acaso no fundo de uma gaveta...
CLARICE – E nessa fotografia estava o filho que você não teve...
BEATRIZ – Mas que eu amei em cada segundo daquele sonho impossível enquanto existiu, daquele meu sonho secreto que se criava ali mas não foi possível, e que mesmo como algo de que eu abdiquei, foi felicidade...

A MULHER E A CASA
João Cabral de Melo Neto

Tua sedução é menos
de mulher do que de casa:
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada.

Mesmo quando ela possui
tua plácida elegância,
esse teu reboco claro,
riso franco de varandas,

uma casa não é nunca
só pra ser contemplada;
melhor: somente por dentro
é possível contemplá-la.

Seduz pelo que é dentro,
ou será, quando se abra;
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas;

pelo que dentro fizeram
com seus vazios, com o nada;
pelos espaços de dentro,
não pelo que dentro guarda;

pelos espaços de dentro:
seus recintos, suas áreas,
organizando-se dentro
em corredores e salas,

os quais sugerindo ao homem
estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas
ou recessos bons de cavas,

exercem sobre esse homem
efeito igual ao que causas:
a vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la.

“Um sujeito precisa de quinze encarnações para viver um momento de amor. Porque a mulher amada, nada a obriga a estar na cidade onde a gente mora, a cruzar o nosso caminho. De forma que encontrar a mulher amada é um cínico e deslavado milagre.”
Nelson Rodrigues

segunda-feira, 9 de março de 2009


O CIO


A tua distância é um mar onde bóiam canteiros,
mas não tens a possibilidade das coisas tristes,
o destino amargo do que perdemos ao desistir...

Talvez sejamos só um delírio ou sua hipótese que arde,
uma ausência que se carrega como um amor vivido,
mas a tua certeza em minha língua se recria...

És a sentença que toda sede define como sobrevivência...
Como um tear, o teu invento dissolve o que essa estrada calcula,
mas números nada valem perto de nossa vontade...

És o cio do sonho que o meu desejo disfarça:
um incêndio é o mínimo que nossos corpos suspeitam,
mas eu sei que no teu espelho a minha fome te invade.

.

domingo, 8 de março de 2009


O SACRÁRIO


E se Jesus tivesse amado?
E se Madalena o tivesse conquistado?
E se Jesus amou?

E se Jesus foi um libertário?
E se Madalena aceitou o ideário?
E se Madalena pregou?

E se Madalena tivesse engravidado?
E se Jesus tivesse confirmado?
E se Jesus negou?

E se Jesus tivesse ameaçado?
E se Madalena tivesse optado?
E se Jesus obrigou?

E se Jesus tivesse cobrado?
E se Madalena tivesse abortado?
E se Jesus acompanhou?

E se o aborto foi involuntário?
E se Jesus foi solidário?
E se Madalena chorou?

E se a perda foi o seu calvário?
E se a morte foi um relicário?
E se seu Deus abençoou?

E se o pecado foi um céu vicário?
E se Madalena foi o seu sacrário?
(E se Jesus foi perdoado?)

E se Jesus perdoou?

WBL, no Dia Internacional da Mulher.

sábado, 7 de março de 2009



CASTIDADE - A propósito dos santos, arcebispos e papas
WBL


Batam na porta da igreja! Acordem o arcebispo, o papa!
Mulher abandonada chora com cinco filhos
sem comida nem marido. Está na porta, na calçada, e chora.
Sem café – almoço quando há –,
jantar jamais. Ela recolhe latas e papéis –
acordem os padres! –, eles ajudarão!
Nos púlpitos, nos sermões e nas encíclicas
eles repetem que é preciso amar a fome e o frio,
o medo e a pobreza cercados de violência! Mas insistem para que
aquela mulher tenha mais filhos. Não importa como nem por quê – seja por amor, por descuido ou por estupro: Deus abençoa. A Igreja quer. Para a Igreja, todo deus é irracional...
Os pobres e os miseráveis serão bem-vindos em algum lugar!
Há um deus que gosta deles. Mas a Igreja, infelizmente,
não os acolherá. A Igreja não quer maltrapilhos
subtraindo de seus fiéis seus trinta dinheiros.
Antes da missa, um pobre desfalca a Igreja,
emagrece a congregação. Como pagar
o vinho? O sino, como pagar?
Por isso, tenhamos filhos, muitos filhos, ricos, pobres ou miseráveis!
Depois, que estes últimos corram para a porta das igrejas,
os padres serão seus sócios na prole sedenta,
os padres devem alimentá-los,
darão sustento para a falsa sagrada família...
Por isso, também, abaixo todos os métodos anticoncepcionais!
Abaixo os controles! Eles prejudicam o negócio do céu!
Como justificar a bondade sem a pobreza nas ruas?
Como ser bom sem os miseráveis?
Lembrem-se: a Igreja é seu pai e sua mãe! A Igreja garante tudo!
Nada de camisinhas, nada de pílulas diárias, nada no dia seguinte, nada de trompas ou deferentes,
nada que possa impedir o crescimento da bondade!
A mulher que toma pílula é uma assassina! Prendam-na logo!
Antes que mate outros milhões de hipotéticas pessoas!
Afinal, alguns poderiam ser padres, e outros, pobres!
Seria perfeito para a Igreja! Portanto, prendam-na!
As esquinas estão lotadas... Há festa nos sinais:
malabaristas, caramelos, lavagem dos vidros –
paguem quando puder!
Mas uma mulher abandonada está prestes a enlouquecer:
cinco filhos, sem roupa nem comida. Não há café para hoje.
Não há nada.
Há a porta das igrejas e os padres. É ali que sua pobreza alcançará
o perdão e a refeição para hoje.
Todos os outros homens almoçarão no inferno.

quinta-feira, 5 de março de 2009



As mulheres são lindas.
Umas, meninas; outras, maduras;
canteiros de cores em dunas de sonho -
estradas de duplos segredos -
caminhos da vontade
de que o mundo seja só o seu redor, e que todos
estejamos ali para vê-las...

As mulheres são lindas.
Doces, frágeis, cruéis – algumas, crudelíssimas -,
e até frias numa magnitude de geleira que
a tudo que toca
destrói, mas guardando a indivisível unidade
das coisas inesquecíveis...

As mulheres são lindas.
Mesmo quando tristes,
mesmo quando ausentes,
e as lindas mais lindas,
e as felizes, irreais,
porque contradizem
o sentido da existência...

Elas passeiam nas praias,
nos salões, nas calçadas,
e derramam em nós
a alegria de adorá-las,
sendo pouco para tanto encanto,
sendo tanto para desprezá-las...


Foto: Giselle Lima, atriz

terça-feira, 3 de março de 2009



Ele disse: "Ou a mulher é fria ou morde. Sem dentada não há amor possível. A única mulher diferente é a fria"...

E o outro completou: "Na mulher fria não há perspectiva amorosa - ou esta é confundida com auto-piedade, disfarces teatrais ou um secreto agradecimento pela aquiescência do outro... A frigidez anula qualquer possibilidade de paixão carnal: o que a fria chama de "paixão" pode ser uma projeção familiar, uma admiração intelectual, cosa mentale, como dizem os italianos... Para a fria não há alegria no sexo. No fim, a frigidez substitui por racionalidades a elevação do amor."