domingo, 24 de julho de 2011


A MÚSICA
W.B. Leal

Quando tocava aquela música
na surpresa antiga dos dias,
eu me perguntava por que,
ou com que propósito, enfim,

a lembrança sempre trazia
com a sua nítida imagem
também o som do riso, o cheiro
da pele como coisa viva,

e tudo voltava somente
porque essa música dizia
que não, nunca haveria alguém
como ela, nunca, e repetia.

Como poderia, eu não sei,
alguém lembrar dessa maneira
de outro alguém que sequer sabia
da frase surda de tal música,

mesmo porque, no nosso tempo,
tempo em que vivemos como um,
aquela música não existia.
Fico pensando noutra música

que, mesmo sem a conhecer,
também passe por ela e diga
o mesmo. Talvez, finalmente,
o melhor será começar

tudo agora, viver de novo
a vida e encontrá-la pela
primeira vez, aí então
ouvir a música. Ou não.

WBLog

sábado, 23 de julho de 2011


LIRA
W.B. Leal

Se contrair a paixão,
há de cortar-se uma mão,
que alveja o branco dos olhos
como o fogo os santos óleos.
Amar demais é ser menos
no espelho que nunca vemos.
Quem dera dela fizera
só um meio da quimera!
Doce verso, árduo ingresso,
ao pecado controverso:
amor, pecado dos mortos,
que vivo é ser como os portos,
absorto aberto destino
que se encanta como hino...
Meninos são quais palhaços
sempiternos como os laços,
dura dor que sempre aninha
outra vida e não a minha.
Querer ser rei como os astros
que por súditos têm mastros,
velando as cartas de amor
que se esquecem num vapor.
O mal do bem não tem fim
se o amor é como em mim.

in O Aedo, 1989.

FÊTE
W.B. Leal

A oratória é uma chávena servida por deus e pelo demônio. Poetas reinam com colares de intestino delgado, há fama e fumo para após as refeições. O idioma da pátria é uma ilha que as asas dos gênios aniquila e a urbe está plena de salas vazias e poucos humildes à porta. Poucos mendigos versejam quixotes dourados. Senhoras comentam sobre a última peste. Doutores concordam e riem, como hienas em hino. Há portas, palácios e papéis a desempenhar. Absorvemos a cultura de um ocidente distante. Somos loucos à margem, démodèe. O status engorda, e a sociedade mantém o descanso aos domingos.

WBL, in O Aedo, 1989

quinta-feira, 21 de julho de 2011


O TAMBOR
W.B. Leal

Estranho relógio
que o peito proclama,
no corpo que cresce,
um corpo reclama.

Estranho relógio,
reverso da trama,
o tempo que conta
é o mesmo que engana.

Estranho relógio,
tambor que me chama,
no corpo que engole
recria o que ama.

in A quarta cruz, W.B. Leal

sexta-feira, 8 de julho de 2011


OS HOMENS DE PEDRA
W.B. Leal

Na rua molhada, sob a chuva que dança
tocando as janelas,
uma mulher está parada e olha o céu.
Enquanto escrevo o meu poema,
talvez ela sofra por um amor perdido,
talvez se lembre do seu luto, de sua razão, do seu abraço;
enquanto escrevo o meu poema, neste momento
em que a cidade escurece no frio da tarde,
um homem sonha uma ponte e um menino
atravessa a rua que um dia tocará aquela ponte;
outra mulher abre a porta de casa e
mais ninguém - ela pensa - navegou como ela o oceano da noite;
enquanto escrevo o meu poema, um homem talvez construa um barco,
outro homem, quem sabe, amanhã o navegue,
e ainda um outro, em algum lugar do mundo,
vê nascer uma criança que um dia cruzará o oceano;
(noutro ponto do país há um homem que nunca viu o mar
nem jamais irá tocá-lo, embora sonhe com ele);
enquanto escrevo o meu poema, um soldado
reinventa a alegria de um hino,
um exército comemora sua vitória e um homem sozinho
não desistirá da bandeira que representa uma mulher;
enquanto escrevo o meu poema, um homem cego desenha uma casa
e um homem do campo, que sequer estudou as palavras,
constrói o seu palácio com pedras e madeiras;
enquanto escrevo o meu poema,
uma mulher costura o vestido com o qual casará sua filha,
um menino chora o pai ainda sem túmulo,
e um poeta se apaixona pela primeira vez
e o seu amor será também o seu primeiro sofrimento;
enquanto escrevo o meu poema ou enquanto alguém o lê,
a vida escorre como a luz em minha janela,
a luz que chega dos homens que um dia acenderam a primeira fogueira.

WBLog