sexta-feira, 17 de julho de 2009

O TEATRO E A VIDA



“O que caracteriza uma peça trágica é, justamente, o poder de criar a vida e não imitá-la. Isso a que se chama 'vida' é o que se representa no palco e não o que vivemos cá fora. Evidentemente, excluo, daqui, as peças digestivas, o teatro para fazer rir, o drama de salão. O personagem do palco é mil vezes mais real, mais denso e, numa palavra, 'mais homem' que cada um dos espectadores. Querem um exemplo? Vejam d. Moema ou d. Eduarda ( na peça Senhora dos Afogados) e ponham-na ao lado de certas senhoras da plateia. Percebemos, então, que a espectadora de carne e osso não vive realmente, imita apenas a vida. Finge que é mulher, finge que é criatura humana e continua fingindo até no leito conjugal. Nada conhece, nada sabe dos desesperos, das paixões, das agonias que a poderiam alçar à plenitude de sua condição humana. Já d. Moema ou d. Eduarda, não. Está no palco, com as olheiras de carvão, mas 'vive'. Tem a autenticidade, a gana, a garra, o delírio que nos faltam. E, súbito, sentimos na plateia o dilaceramento da nossa frustração total. O personagem vive a vida, que devia ser a nossa, a vida que recusamos. Outra verdade, que julgo definitiva, é a seguinte: a alegria não pertence ao teatro. Pode-se medir a força de uma peça e a sua pureza teatral pela capacidade de criar desesperos. O teatro ou é desesperado ou não é teatro. Certos beneméritos colocam o problema teatral em termos de 'Reconstituinte Silva Araújo'. Segundo esses, as peças tristes - as peças que libertam os anjos das nossas agonias - não são válidas. E, no entanto, o que acontece é precisamente o contrário. Alegria não dá nada, ou quase nada, seja na vida mesma, seja no teatro. Ela empobrece, amesquinha e aniquila o nosso horizonte interior. Ao passo que o desespero confere ao homem uma dimensão nova e decisiva. O verdadeiro dramaturgo, o que não falsifica, não trapaceia, limita-se a cavar na carne e na alma, a trabalhar nas paixões sem esperanças, que arrancam de nós o gemido mais fundo e irredutível. Isso faz sofrer, dirão. De acordo. Mas o teatro não é um lugar de recreio irresponsável. Não. É, antes, um pátio de expiação. Talvez fosse mais lógico que víssemos as peças, não sentados, mas atônitos e de joelhos. Pois o que ocorre no palco é o julgamento do nosso mundo, o nosso próprio julgamento, o julgamento do que pecamos e poderíamos ter pecado. Diante da verdadeira tragédia, o espectador crispa-se na cadeira, como um pobre, um miserando condenado.Esta peça (Senhora dos Afogados) está varrida de suicidas, incestuosos, adúlteras e insanos. Mas vamos e venhamos: o homem normal, com a sua amena transparência, não oferece nenhuma teatralidade. É o antiteatral por excelência. Falta-lhe o ranger dos dentes, o ríctus, o esgar de ódio, de medo. Num mundo como o nosso, definitivamente infeliz e doente, é quase uma obrigação ser também infeliz, também doente. Permito-me uma comparação: rir neste mundo é o mesmo que, num velório, acender o cigarro na chama de um círio.” (Nelson Rodrigues)

Um comentário:

Madeira de Cetim disse...

A época do quindim passou. Sou melodia em tom menor, mas sincopada como um bom samba. A felicidade é invariável, por si não dá bom enredo.AA- Portugal, Junho de 2007.