quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

TEATRO/ resenha




Quatro personagens. Duas atrizes e dois atores que surgem de onde parecem guardar todo sofrimento humano. Quatro vozes que se alimentam sem se tocar, que se justificam sem se consolar, como tragédias que sobrevivessem nas câmaras de um estranho coração. Este coração é uma caixa de madeira. Em seu interior iluminado e revestido de vermelho está o lugar da perda, o espaço da falta e o cemitério de todos os traumas, culpas e arrependimentos que são o desnudamento de uma verdade comum: a dor do outro nos incomoda porque também é nossa dor, mas identificar-se com ela é o que, no fim, nos humaniza.

O espetáculo “O Silêncio dos Amantes”, que encena quatro textos do livro homônimo da escritora gaúcha Lya Luft, é um exemplo de coragem no atual teatro brasileiro. Por duas razões: primeiro, não é uma comédia – gênero quase obrigatório na maioria das montagens recentes que, via de regra, buscam a bilheteria de um público fácil; em segundo lugar, por antítese lógica, é uma peça que emociona pela verdade, que nos provoca pela força que a dor humana deposita em cada um de seus sobreviventes. Estes sobreviventes habitam a cena mas também podem estar sentados ao seu lado, ou adormecidos dentro de você. E de cima da caixa de madeira, todos parecem perguntar: “Você teria a minha coragem? Teria a minha força?”... Também por isso, este espetáculo poderia ser classificado como uma tragédia quase nos moldes gregos, não fosse pela engenhosa arquitetura do diretor Moacyr Góes que, ao costurar dramaturgicamente quatro textos independentes, deu-lhes uma identidade contemporânea que os percorre sem os amarrar, que os assemelha sem se repetir, como se quatro mãos sustentassem os fios de uma mesma queda: a dor humana é esta queda, mas também é sensibilidade e elevação.

No primeiro momento da peça, o filho anão de um pai ditador e de uma mãe submissa expõe-nos cruamente os traumas de sua deficiência. Esses traumas não estão necessariamente no ananismo do personagem, vigoroso e afirmativo em seu sofrimento, mas na fraqueza do pai em não aceitá-lo como tal e culpar a mãe por ter gerado “um bicho”. Na relação do pai com o filho anão se evidencia o abismo que vai muito além do preconceito com sua diferença. Este preconceito, como se percebe aqui, pode cegar quem o sente, impedindo de ver que quem sofre a discriminação é aquele que, verdadeiramente, é o mais forte. Neste caso, o anão interpretado por Leon Góes é um gigante.

Entre uma e outra história portas e luzes nos revelam personagens que aos poucos se transformam em anjos, entre os quais também vive uma bailarina – Giselle Lima –, criada à maneira das figuras do pintor francês Edgar Degas. Essas transições ou interlúdios parecem estudados minuciosamente, pois conduzidos pela música original – que per si consiste numa obra dentro da obra - de Rafael e Leonardo Sperling, contrapõem o sofrimento dos personagens à delicadeza de seus movimentos. Há dor mas há delicadeza em tudo.

A personagem de Giselle Lima é uma esposa atormentada pelo suicídio do marido, do qual ela se sente culpada por não ter percebido os sinais iminentes. O marido, vivo em sua recordação, é recuperado na catarse de uma perda pela qual ela se sente responsável. Uma árvore numa estrada, sempre lembrada pelo marido como metáfora materna, na verdade era o seio aonde ele buscaria o definitivo descanso. A esposa então é lucidez e delírio, sonho e poesia, reconstruindo, ora como mulher, ora como menina, o universo lírico da falta e da ausência. Este é o segundo degrau de uma subida através da qual o diretor nos conduz em seu corajoso propósito de um espetáculo que analisa a poesia possível da dor humana, em que explora os limites de nossa resistência diante do espelho que se quebra. Desacostumadas com isso, é curioso observar como, nas primeiras falas do personagem de Leon Góes, algumas pessoas da platéia ainda chegam a esboçar algum riso diante do sofrimento explícito do menino-anão que se debate no palco. Mas logo o automatismo condicionante de uma impossível comédia se dissolve, e com a chegada da mulher interpretada por Giselle, a certeza de que se está diante de uma investigação dramatúrgica da dor se torna latente, e todo silêncio se veste de sensação e poesia. É este idílio dramático que se converte na metáfora plástica de uma bailarina.

O terceiro fragmento do espetáculo obriga o ator Augusto Garcia a uma incômoda missão: após arrumar algumas dezenas de copos plásticos no piso de madeira, o personagem se equilibra sobre eles para nos revelar o filho de uma mãe alcoólatra. Mais uma vez, o encenador faz da cena a metáfora do que conta, e a angústia do público diante da possibilidade do desequilíbrio aos poucos se torna irrisória ante a impotência de uma mulher que sucumbe ao vício e à morte. É a fragilidade deste equilíbrio o que metaforiza, agora, a impotência do filho. E talvez este seja, para o ator, seu segundo e incômodo desafio.

Finalmente, após este terceiro fragmento do que poderíamos considerar a mais ousada investigação psicológica levada à cena por Moacyr Góes, surge a personagem da jovem e experiente atriz Carla Rosa. Uma mãe atormentada é o enredo de sua história. E aqui vale uma observação sobre a escolha e organização dos textos escolhidos por Góes. Embora escritos como capítulos independentes de um livro de contos, essas histórias de Lya Luft não deixam de insinuar uma relação íntima entre si, não apenas na temática da dor – comum a todas –, mas no que permite especular até onde a mãe do menino-anão não seria a mesma que percorre todas as outras histórias, e assim todos os maridos e todos os filhos sendo os mesmos sob diferentes ângulos. Isso cria possibilidades infinitas de relações intertextuais, em que a familiaridade dos personagens não reside apenas no sofrimento comum. É nesta ponte que a mãe atormentada pela perda do filho, interpretada por Carla Rosa, vem coroar “O Silêncio dos Amantes” com uma força dramática digna dos grandes poemas, quando a performance impecável de uma atriz nos proporciona um final irretocável. Carla empresta a seu texto uma gravidade lírica que, num crescendo de sensações, leva-nos à conclusão de que o amor, ainda que enganando a si mesmo, justifica, no teatro ou fora dele, todas as palavras e todos os silêncios para tornar-se real.



Ficha técnica:

O SILÊNCIO DOS AMANTES
Direção: Moacyr Goes
Com: Carla Rosa / Giselle Lima / Augusto Garcia / Leon Góes
Assistência de Direção: André Chevitarese
Direção Musical: Ary Sperling
Cenografia: Paulo Flacksman
Figurinos: Inês Salgado e Fúlvia Costalonga
Iluminação: Paulo Cesar Medeiros
Direção de Produção: Companhia Escola 2 Bufões
Assessoria de Produção: Lúdico Produções Artísticas

Nenhum comentário: