segunda-feira, 28 de novembro de 2011


O MARINHEIRO
W.B. Leal


Outro amigo telefona com notícias do mundo.
Ele não diz - os amigos são donos de toda delicadeza -
mas sabe que definitivamente sou um homem
do século passado. Gosto da voz no telefone, do fio
que carrega a emoção até o rio onde nossas vozes
se encontram. Gosto de pensar que assim como
os livros, os telefones nunca serão esquecidos.
Hoje a voz de Montserrat Figueras calou para sempre.
Eis a data deste poema, eis a datação de uma perda e
de uma tristeza. Não sabemos por que sentimos a dor
que parece não nos pertencer, a falta de uma existência
que apenas a arte nos faz comungar quando reúne
num mesmo amor a presença, a distância e a ausência.
Agora os dias terão o silêncio que uma nova música
não saberá preencher. Mesmo os amigos com quem
não convivo, aqueles que ainda morando na mesma
cidade do Rio de Janeiro não costumo encontrar,
permanecem comigo em meu cotidiano abstrato
a cerzir os vazios que são inundações de lembranças.
Nem a mais pública de todas as vidas terá tantos
passageiros quanto o navio de minhas faltas, o navio
no qual sobrevivem esperas e invenções, ausências e
suposições com as quais desenho cidades e países.
Sou o vagabundo que inventa o seu mundo, o marinheiro
da cantiga catalã que agora escuto com Arianna Savall.
Eis o ramo de flores que deixo sobre a lembrança de Montserrat
Figueras. El Mariner navega a minha casa e chega até onde
estou ancorado. E imóvel eu danço. E canto sob a sua noite.

WBLog

quinta-feira, 24 de novembro de 2011


A TARDE
W. B. Leal


Na mesa do Café onde quase semanalmente
encontrava os amigos, a moça perguntou
sobre música e poesia enquanto algo marcava
o turbilhão de ruídos dos frequentadores.
Eu expliquei que não há ordem em minhas
leituras, que tento transformar meus poemas
num diário esparso, e em minha casa há tantos
livros semeados em cada canto que há sempre
um reencontro, um susto, uma recordação.
Enquanto lia hoje, eu lhe disse uma vez, escutava
os Prelúdios de Debussy, mas todas as noites leio
ouvindo o piano de Lizst, e ela perguntou quem
seria o meu preferido, e eu disse não há garantias
para uma resposta cuja pergunta é tão perigosa,
mas em minha casa Beethoven está sempre ao lado
do que me faz companhia, como uma lembrança
faz companhia, um livro lembra outro livro.

Estranha memória que em tudo amarra nomes
e histórias de existências vivas ou mortas, passagens
que renascem apenas nesses instantes.
E penso nos antepassados que não conhecemos
e lembro os nomes de William Carlos Williams e
Wallace Stevens, tão sempre perto de mim
como Rimbaud e Borges e Drummond.

Ainda ontem eu lia A Casa de Papel e pensava em todos
aqueles nomes pregados nas paredes, enterrados
no chão daquela praia, e via ali a casa que eu sou
e que também vai se apagando, se reconstruindo,
se erguendo e demolindo com lembranças e
esquecimentos. Neste momento, por exemplo, isto é apenas
um poema no meio da tarde, e agora uma ambulância
estaciona sobre a calçada - quem estará
morrendo? será aquela senhora que não conheço e
sorri quando me vê? - e a sala é inundada pelas
sequências iluminadas da Oitava Sinfonia
de Beethoven que a moça do Café disse
nunca ter observado apropriadamente mas
prometeu escutar outra vez.

WBLog

quarta-feira, 9 de novembro de 2011


ESTE DIA
W.B. Leal

Acordas da página para o seu vazio sagrado.
Olho que se ergue sobre os olhos da casa,
onde não há voz, distância ou leitura,
onde somente preocupa-se o tempo
em recolher as correias de sua carroça de plumas,
reerguer suas rodas sobre a esteira da terra,
rever seu engenho, que nunca se quebra
ou esquece - o tempo apenas reconhece -
e há apenas a noite e sua sacola de cinzas.

Acordas para o espaço que cabe em mim
como um castelo de infância,
para uma história de infância que não
a minha - esta serpente de vidro
numa garrafa de prata -
para a largura do dia aonde cresce a estrada,
para uma vila ou uma estrada por onde
passam todos os dias e há apenas a noite
e seu escudo de luz na garganta do céu.

Acordas ainda para a lembrança que
em mim é como um carneiro e sua casca de laços,
vago e azul sob o amor que fabrica
e que também é primavera:
de minha cidade abençoo as bandeiras
desse cortejo de línguas, e lento e interminável
alimento com música a alvorada de cores.
Em meus mapas não há outro nome
que este símbolo azul.


WBLog, in Os Círculos Imprecisos, massao ohno editor, SP, 1994.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011


RIBEIRÃO
W.B. Leal

Como o verão que
acende seu fogo nas
madeiras do calendário,
o teu corpo é a praia
onde dança a alegria.

Os dias escorrem
na transparência do relógio de vidro,
e doce e amaro
o teu nome guarda a bandeira
que a minha lua alcança.

WBLog

AINDA SOMOS BÁRBAROS
W.B. Leal

Enquanto nos parques de Quebec e Toronto
meninos disputam jogos eletrônicos e desejam
atualizações para seus telefones de última geração,

enquanto nos escritórios de Wall Street e
da City londrina operadores trapaceiam
para vencer a fome de seus lucros irreais,

enquanto nos laboratórios de Seattle e de
Paris cientistas buscam a cura para a sede
e o descontrole dos mosquitos da África,

nas feiras públicas de qualquer cidade muçulmana
homens compram e vendem cabras, vacas e
camelos para o sacrifício da festa religiosa Eid ul Adha.

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